úcio Vilar
Especial para A União
Para a antropóloga Débora Diniz, milícias virtuais promovem desestabilização democrática e fazem uso do terror
Débora Diniz, antropóloga e docente da Universidade de Brasília (UnB), foi a primeira personalidade pública a deixar o país, no ano passado, em decorrência de uma sistemática campanha de linchamento público nas redes sociais e pelo Whatsapp. Combinado a isso, reiteradas ameaças de morte foram feitas pelo telefone com uma particularidade assustadora: as ameaças eram dirigidas a ela, ao seu marido, seus pais, alunos e nem mesmo a reitora da instituição foi poupada dos virulentos ataques, gerando uma onda de medo e insegurança.
“Chegaram ao ponto de cogitar um massacre na universidade caso eu continuasse dando aulas. A estratégia desse terror é a covardia da dúvida. Não sabemos se são apenas bravateiros. Há o risco do efeito de contágio, de alguém de fora do circuito concretizar a ameaça, já que os agressores incitam violência e ódio contra mim a todo o momento”, contou na época.
A situação levou ao cancelamento de sua participação em vários eventos como fóruns mundiais, obrigando-a a declinar de convites, inclusive de ser paraninfa de turmas na UnB. Uma das situações inusitadas foi ter que se evadir do local que sediava um congresso que contou com sua participação, quando teve que sair pela porta dos fundos para evitar contato com um grupo de inflamados manifestantes que a aguardava na entrada do prédio.Incluída pela revista norte-americana Foreign Policy como um dos 100 maiores pensadores globais, Débora Diniz é pesquisadora, escritora e documentarista (já tendo sido premiada no Fest Aruanda, em 2007), consolidando-se como uma ativista dos direitos humanos, com atuação no campo sexual e reprodutivo. Foi ela quem, em 2004, colaborou diretamente para que fosse bem-sucedida uma ação no Supremo que permitia o aborto de gestação de fetos anencéfalos, um tema tabu que gerou muita controvérsia antes e durante a votação. Mas, tudo mudaria de tom com uma nova ação, ainda em tramitação no STF, que objetiva aprovar a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez e que tem a docente como uma de suas defensoras.
Desde então, sua rotina acadêmica virou de ponta-cabeça e ela teve que interromper suas atividades ao entrar com pedido de licença do curso de Direito e foi incluída no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do Governo Federal. Emparedada, impedida de dar aulas e sem as garantias mínimas da observância do direito sagrado de ir e vir, não lhe restou alternativa senão deixar o Brasil. O detalhe é que ela deixou o país em outubro de 2018, antes de Marcia Tiburi e Jean Wyllys. Confira os principais trechos da terceira e última entrevista da série ‘Desterrados'.
A entrevista
A UNIÃO - Como as divergências extrapolaram o campo do debate público e das redes sociais, atingindo o paroxismo das ameaças à sua integridade física?
DD - Se as ameaças que recebi fossem somente contra mim, eu jamais teria saído do Brasil. Saí para proteger outras pessoas, minha família e a comunidade acadêmica da Universidade de Brasília, por exemplo. Mesmo assim, não teria como ter sido uma escolha fácil. Ficou para trás toda uma vida como eu a conhecia. Não ter uma data certa para voltar é algo perverso, mas, mesmo à distância, sigo fazendo meu trabalho. Isso não vai mudar.
AU - Aliás, o próprio uso, pela imprensa, da expressão ‘autoexílio’ tem sido criticado pela inadequação para situações como a sua, de Jean Wyllys e Marcia Tiburi.
DD - Prefiro chamar o que vivo de desterro, no sentido da pena que me foi imposta por dissentir da ordem política. Fui ameaçada por ter as opiniões políticas que tenho e por elas estarem em desacordo com o atual governo de Bolsonaro e aqueles que o apoiam, inclusive suas milícias virtuais. Mas jamais irão me calar. Convivo há bastante tempo com essas ameaças, desde que minha atuação em defesa de direitos sexuais e reprodutivos ganhou visibilidade, no início dos anos 2000.
AU - Diferente da figura tradicional do exilado que temos dos ‘anos de chumbo’, como é ter que sair do país em um “regime democrático”, por mais aspas que o termo carregue nos últimos anos?
Minha saída e minha impossibilidade de retornar não são voluntárias. Voltar ao Brasil significaria não poder participar de eventos públicos, não poder retornar à docência, ser acompanhada por escolta policial. Sou uma vítima de violência, não há dúvida, no entanto, tenho poder de voz. As graves e absurdas intimidações que recebo não me dão medo, mas as levo muito a sério. Minha cautela em denunciá-las à polícia não significa intimidação, significa indignação e luta. As milícias virtuais que promovem a desestabilização democrática e ameaçam figuras como eu, Jean Wyllys e Márcia Tiburi usam o terror como estratégia de enfraquecimento dos direitos humanos. Incitam que aqueles que, assim como nós, ousam falar o que pensam e defendem, serão afastados, terão suas vidas reviradas. Mas isso não pode ser naturalizado.
AU - Em entrevistas concedidas, no ano passado, a senhora falou em uma “politização de ressentidos”. Poderia explicar melhor?
DD - Me refiro à uma comunidade de ódio que floresce na clandestinidade virtual e na política atual do país. São comunidades masculinas, de homens jovens ressentidos da história. São homens que desdenham das mulheres, pois as imaginam na casa ou como procriadoras; são homens que discriminam os gays, pois não suportam masculinidades alternativas; são homens racistas que não querem ver pessoas negras em espaços de poder. São comunidades sem líder ou estrutura formal, ligadas por um conjunto de valores e práticas odiosas. Bolsonaro e suas milícias virtuais são parte desses ressentidos da história, que agora estão ávidos pela tomada do poder político.
AU - Desde o início o MEC deflagrou uma ofensiva contra as universidades públicas do país, com anúncio de cortes de 30%, fim dos cursos de Sociologia e Filosofia, além da depreciação da figura de Paulo Freire. A autonomia universitária, garantida pela Constituição cidadã, está em risco?
DD - Diria que o bloqueio foi uma tentativa de colocar uma mordaça nas universidades. Houve também os cortes de bolsas de pós-graduação. Isso tudo demonstra o despreparo democrático do governo bolsonarista para lidar com críticas, comuns em espaços universitários que prezam por pensamento e debate críticos. Mas haverá gente resistindo de todos os lados. O corte inicialmente proposto às pesquisas que tivessem “viés ideológico” rende batalha judicial de violação da liberdade de cátedra. Todos os setores acadêmicos estão atentos e engajados. A temida balbúrdia será os professores e pesquisadores provando a ineficácia da política bolsonarista de desmonte da Educação.
AU - Última investida do governo foi lançar o projeto ‘Future-se’.
DD - O projeto Future-se é mais uma expressão do anti-intelectualismo do bolsonarismo, junto com os cortes de verbas das universidades e de bolsas de estudo. A perseguição às universidades e à ciência é um traço fascista de um governo incapaz de sustentar com argumentos e evidências seus desmandos. Tentar silenciar a pesquisa, o ensino e a extensão, acabar com a democratização da educação superior é um desespero típico de quem teme a produção de conhecimento, a capacidade de fazer perguntas, o pensamento crítico. Esse desespero é evidente no bolsonarismo em muitos níveis. Enquanto o Ministério da Educação ataca a autonomia das universidades, o ministro Weintraub bloqueia em seu perfil de Twitter quem discorde dele. Eu, que sou professora e pesquisadora universitária e dialogo diariamente via Twitter, fui uma das bloqueadas. Dias depois, 111 mulheres advogadas entraram com um pedido no Superior Tribunal de Justiça para reverter esse bloqueio. Weintraub não pode tratar sua conta de Twitter como canal oficial de comunicação e impor censura quando o dissenso não lhe convém – isso só demonstra despreparo, desespero, medo do debate.
AU - Olavo de Carvalho, figura controvertida e tratado como ‘guru’ do presidente e de seus filhos, foi pela senhora desafiado recentemente a um debate público (que não aceitou, diga-se). Como explicar que indivíduos defensores de risíveis ‘teses terraplanistas’ possam ter encontrado eco – e discípulos, o que é mais grave – para tais disparates científicos em pleno século 21?
DD - Olavo desdenha das universidades e dos professores porque sabe que não pertence ao que ousamos pronunciar como ciência. Opiniões não são argumentos acadêmicos e talvez seja essa noção que falte a tais indivíduos. É preciso que essas ideias sejam submetidas a métodos científicos de busca da verdade. Diria que é mais fácil se acomodar em uma ideia passada passivamente, do que se confrontar e encarar o pensamento crítico. Quando publico um artigo em periódico científico, me submeto ao julgamento de colegas que desconheço, recebo pareceres de avaliação de minhas ideias, torno públicas as razões de minhas teses. O que significa que estou aberta a contestações e debates. Mas o que vemos na atualidade é um perigoso abandono desse cuidado e respeito à ciência que dá espaço a ideias fantasiosas e ficcionais.
AU - Nos últimos dias o presidente tem subvertido a chamada ‘liturgia do cargo’, inclusive com falas que resvalam na mais escancarada escatologia...
DD - A obsessão escatológica de Bolsonaro é uma distração autoritária do poder. Enquanto ele faz escárnio com políticas ambientais recomendando disciplinar o intestino em regime de “dia sim, dia não” e nós nos espantamos com sua tolice, o governo avança no desmatamento na Amazônia e na espoliação de terras indígenas. Quando ele fala em “cocozinho petrificado” de índios como aquilo que dificultaria licenciamentos ambientais, desumaniza povos indígenas para justificar as políticas destrutivas de seu governo. Ele já disse inúmeras vezes que quer indígenas “integrados à sociedade”, ou seja, submetidos aos seus desmandos. Mas a população não se distrai fácil e a resposta tem força: enquanto ele gastava seu palavreado de banheiro, 2 mil mulheres indígenas, de 120 povos, se reuniram em Brasília para a primeira marcha de mulheres indígenas da história do país, com o lema “Território: nosso corpo, nosso espírito”. As mulheres indígenas vieram em aliança com outras 100 mil mulheres trabalhadoras rurais para a Marcha das Margaridas, considerada a maior movimentação permanente das mulheres latino-americanas.
*publicada originalmente na edição impressa de 26 de agosto de 2019.