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"Direitos humanos são o remédio que precisamos", diz José Godoy

publicado: 30/09/2019 10h18, última modificação: 30/09/2019 10h18
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Para o procurador, a ascensão das classes mais pobres a bens de consumo desperta em algumas classes a chamada “ansiedade por perda de status - Foto: Foto: Ortilo Antônio

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por Rammon Monte*

Em tempos de constantes ataques e perseguições aos direitos humanos, uma voz no Ministério Público Federal na Paraíba vem ganhando notoriedade. Com uma luta constante em prol das minorias, o procurador regional dos Direitos do Cidadão, José Godoy Bezerra de Souza, tem participado efetivamente da defesa destes grupos, como sua participação na luta dos moradores da comunidade do Porto do Capim. Ele abriu as portas de seu gabinete para uma entrevista ao Jornal A União. Confira abaixo:

- Como o senhor enxerga a forma que os direitos humanos estão sendo tratados no Brasil?

- Eu gostei muito de uma frase não tão recente do coronel reformado íbis, que foi comandante da Polícia Militar do Rio de Janeiro, e ele dizia que é como o remédio que nós mais precisássemos neste momento fosse mais direitos humanos, e é justamente o remédio que mais se recusa a dar ao paciente. Então os direitos humanos são tratados de uma forma absolutamente equivocada, como se o mal da humanidade fossem os direitos humanos, quando na verdade só existe a humanidade porque existem os direitos humanos. Eu diria que os direitos humanos são o pacto mínimo de convivência da espécie humana sob a terra. E pessoas mal intencionadas acusam os direitos humanos de ser o grande mal. Parece um pouco como se fosse Nero colocando fogo em Roma e dizendo que foram os cristãos que fizeram aquilo.

- Hoje, além de uma negação, vivemos uma espécie de perseguição aos direitos humanos, né?

- Uma forte perseguição aos defensores de direitos humanos no Brasil. Nós vivemos um momento mundial muito interessante, em que ele tem aspectos do início do século passado, nazismo e fascismo em diversos pontos. Nós temos aspectos pré-iluministas, ou seja, pré-revolução francesa, que ataca direitos humanos, e nós temos aspectos medievais, pré-renascentistas, que é quando você vê o Teocentrismo, ataque à ciência, às artes. Então é um momento em que a humanidade, não é só no Brasil, no Brasil eu acho que é a maior caricatura disto tudo, mas ele caracteriza-se num movimento em que você vê um ataque às ciências, às descobertas básicas. Há uma perda de energia muito grande, você pensar que descobertas da ciência já consagradas você tem que voltar para dizer que a terra não é plana, que as vacinas são importantes.

A humanidade tem que caminhar, uma hora você tem que dizer que escravidão não é bacana. Você voltar hoje para dizer que escravidão, que racismo não é legal, não é bom para a humanidade, é uma perda de energia muito grande. É como se a gente tivesse uma ideia de retrocesso forte que nos obriga perder energia, de avançarmos nas nossas pautas para voltar e explicar coisas que já estariam ultrapassadas, desde que a terra não é plana, desde que a terra que gira em torno do sol, não ao contrário, que as vacinas são importantes, que as artes são fundamentais ou o antropocentrismo foi uma grande pensar da humanidade a questões básicas. Então enquanto surgem no mundo teorias filosóficas ate a avançarem e tornarem mais profundas as reflexões filosóficas de grandes pensadores como Sócrates, Aristóteles, Platão, Descartes e outros, nós ainda temos movimentos que negam os primados básicos da civilização ocidental, como, por exemplo, as ideias da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

- Há que o senhor acha que se deve isto?

 - Alguns livros buscam explicar. Por exemplo, o movimento americano deste retrocesso ele talvez comece a surgir na grande luta por direitos civis e políticos para os negros na década de 60 do século passado. Porque naquele momento, você quebrava ali 100 anos de um grande acordo entre republicanos e democratas. Em que eles praticamente entre 1860 e 1960 mantiveram os negros fora do processo democrático com várias regras esdrúxulas de preço, de exigências, de valores para votar, com exigências de escolaridade mínima. E a partir da década de 60, os democratas estiveram junto com os negros na luta pelo fim do apartheid nos Estados Unidos. E isto fez com que os republicanos perdessem o espaço eleitoral e passassem a não mais aceitar a regra do jogo, porque talvez a regra do jogo os prejudicasse. Isto vai aparecer a partir do final da década de 1970 nos Estados Unidos, o que seria hoje o tripartite, que é aquela área bem mais radical do partido republicano. Porque ele não aceita mais a democracia e não há mais o respeito pelo espaço democrático, ao discurso democrático, a vontade da democracia começa a sumir. Porque o partido republicano começa a ser identificado como o partido ligado ao homem branco americano e que ele se sente minoria, acuado e diz: não, a igualdade pode me trazer um prejuízo e eu ser realmente igual.

No Brasil este processo é decorrência de algo bem mais amplo, mundial, mas tem um pouco a ver com isto também. Com a ascensão que você vai ter das classes mais pobres a bens de consumo. Isto traz para algumas classes a chamada ansiedade por perda de status. Em que ele começa a achar que esta democracia pode trazer prejuízo a eles e eles se tornarem uma minoria. E começam a atacar os alicerces da democracia. É um processo que em cada país vai ter uma explicação. Na Europa provavelmente a imigração traz este medo e você tem as redes sociais que funcionam como uma ideia incediadora, que vai cada vez mais fomentar este medo em vários estratos sociais e fazer com que a gente viva hoje este momento absolutamente retrógrado, a nível mundial. Há uma certa ponta de esperança porque a eleição brasileira de 2018 trouxe algo tão brutal, tão perverso para o mundo, mostrou uma ultra-direita tão perversa, que a gente vê que em outros países já há um recuo. Argentina dá sinais disto, os próprios políticos italianos resolveram de sua forma se submeter a um pleito eleitoral, hoje o Boris Johnson dentro da Inglaterra já perde maioria no parlamento, as pesquisas mostram o Trump atrás, talvez o ponto chave da virada do mundo seja a eleição brasileira de 2018, que trouxe alguém tão brutal, tão perverso, com ideia tão retrograda que assusta ao mundo todo.

- Este “contra-ataque” visto em outros locais do mundo já existe no Brasil? A população brasileira já abriu os olhos?

- Não dá para sabermos ainda. Eu acho que outras eleições no mundo é que vão apontar algum processo realmente de refluir. Não é apenas por ser direita. A direita e esquerda, o centro-direita, centro-esquerda sempre disputaram em vários países do mundo e não há problemas quanto a isto. O problema é uma ultra-direita tão retrógrada que você vê aspectos medievais nela, como, por exemplo, a ideia do Teocentrismo, que é uma ideia do ano 1400, face a grande ideia do renascentismo, a partir de 1500, que seria justamente a ideia de antropocentrismo. A ideia do teocentrismo é isto que a gente tem visto hoje, dentro da própria estrutura estatal, apesar da constituição dizer que o estado é laico nós temos ideias teocentristas, radicais, fundamentalistas dentro da própria estrutura estatal contrariando frontalmente a Constituição Brasileira. Eu diria que não dá ainda para cravar que começa a refluir, mas acho que as respostas do restante das civilizações ao grau de degradação do ambiente democrático, civilizatório que o Brasil tem apresentado desde a eleição de 2018, nos traz uma perspectiva de talvez seja um ponto de curva. E que o Brasil, para nossa infelicidade, mas talvez pela felicidade do mundo, seja o exemplo mais brutal, que assusta o resto do mundo, a ponto de dizer: nós não pudemos passar daquilo, porque podemos virar o que o Brasil virou.

- Onde entra a atuação do Ministério Público Federal neste contexto?

- Esta é uma questão que é importante discutirmos. É preciso reconhecer as limitações do sistema de justiça como órgão técnico que atende o cumprimento da lei. Mas não há tantas limitações neste momento. Mas elas podem se tornar muito maiores. Quando eu falo de sistema de justiça, eu falo de poder judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Advocacia Pública e os próprios advogados particulares. Hoje ainda há um quadro normativo que permite a ação dos órgãos de sistema de justiça. Nós ainda temos uma constituição, é a primeira constituição brasileira que traz em seu bojo direitos fundamentais de segunda geração, com 70 anos de atraso em relação, por exemplo, a Alemanha, de 1919, traz a primeira Constituição com direitos fundamentais da segunda geração, a Constituição Weimar, coincidentemente lá dez anos depois você tem a ultra-direita do nazismo de Hitler para destruir esta constituição.

 A nossa de 1988 é a nossa primeira e 30 anos depois nós tivemos um partido com ideias semelhantes as de Adolf Hitler, do nazismo, tomando o poder exatamente na intenção de destruir os direitos instalados ali. Precisamos entender que o sistema de justiça ele tem limitações porque atua dentro de um quadro normativo. Hoje ainda temos constituição, tratados e leis. Mas há uma pressa no congresso, especialmente através de propostas do governo ou da base governamental em minar este quadro normativo. Se este quadro for totalmente minado, eu diria que o sistema de justiça vai encontrar limitações para atuar.

Mesmo assim, mesmo existindo quadro normativo, o sistema de justiça brasileiro ele tem umas limitações na sua estrutura, até sociológicas, nesta questão de enfrentar o poder dominante na implementação de direitos humanos.Tanto que o presidente da suprema corte alemã estava esta semana no Brasil defendendo o óbvio, a grande razão de existir da suprema corte é defender as minorias. Mas a gente teme hoje, ate mesmo porque na escolha para o procurador geral da república o pedido do presidente explícito ela que tivesse uma visão alinhada a dele em relação à questão indígena. Ou seja, era que o MP, PGR, deixasse de proteger os índios.Para o supremo, a ideia do presidente é de um minsitro seja alinhado a ele na questão religiosa. Ou seja, intolerância religiosa, inexistência do estado laico e tantas outras questões essenciais de uma democracia. Entao eu diria, neste momento ainda há espaços de atuação, mas eles começam a ser minados claramente pelo poder vigente.

- Então há riscos?

- Sim, há riscos. Como diz no livro “Como as Democracias Morrem” diz, as grades da democracia começam a ser abaladas. Porque a ideia de democracia, nós temos que entender que democracia acima de tudo é uma vontade de democracia de um país. Mais do que o que está na Constituição, é a vontade. Os autores de “Como as democracias morrem” comparam a democracia a um jogo de futebol de rua, onde as partes concordam estar ali e respeitar as normas, porque eles entendem que precisam estar ali. É o que Fernando Lassale chamava de os fatores reais de poder. Eles entendem que precisam do outro para manter a democracia. Eles preferem manter a disputa, querendo ganhar, mas entendem a importância do outro.

Quando você chega a um poder, um grupo, que ele entende que o outro não é seu oponente, mas alguém que tem que ser destruído para não ter mais aquele espaço do jogo democrático, a democracia corre um risco muito sério. E ele começa a chocar as grades da democracia. Nos Estados Unidos isto está muito forte e os autores começam a ver que há resistência por parte do processo democrático americano. As instituições têm resistido. No Brasil, eu diria que a insituição que tem melhor resistido ainda é o Congresso Nacional e o Supremo, mas com ameaça constante de colocar ministro terrivelmente evangélicos, ou seja que desconsiderem a Constituição para atender a vontade do poder dominante.

O Ministério Público que sempre foi um poder muito importante, muito relevante neste processo, o processo de escolha se deu, não vou entrar no mérito sobre o escolhido, mas a transparência, a publicidade que o processo de escolha se daria numa pessoa que ignorasse a questão das minorias, dos indígenas, que se alinhasse ao presidente nas questões religiosas dispensando o estado laico e toda uma série de direitos fundamentais. A publicaide como se deu o processo já transforma, já joga desconfiança sobre o cargo. A ponto das instituições estarem todas atentas quem teremos no cargo. Então é como se a grade da democracia estivessem sendo testadas ao seu limite, porque quem está jogando no jogo, não quer que tenha um oponente, ele quer acabar o jogo.

- Há um projeto de lei que tramita no Congresso que quer criminalizar o comunismo. Considerando um governo que chama de comunista todo aquele que não concorda com ele, isto vai um pouco de encontro com esta ideia de eliminar o contraditório, não é?  

- Há um processo talvez mais deletério do que tinha na Ditadura Militar. É um processo que estamos nele há nove meses, mas durante a Ditadura Militar, apesar da repressão política e violência estatal está presente, no começo não estava tão presente, vamos tendo um aumento até chegar no ápice no fim da década de 60 e começo da década de 70, é que naquela época você não tinha o que a gente temos chamado inicialmente de milícia digital, que são grupos de apoiadores do presidente. Já está até deixando de ser milícia digital. Que atacam as pessoas. Qualquer pessoa que se oponha ao grupo, à família presidencial.Isto é algo que na história do Brasil nunca tivemos uma família no poder, isto demonstra o desprezo pela política.

A política é a capacidade de cruzar interesses diversos, quando você chega ao poder e diz que minha família chegou ao poder, você não está disposto a harmonizar. Isto já é uma caracterização. Uma outra questão que nos choca nisto tudo é você em 9 meses ter um processo que só se assemelha na Itália ao fascismo. Um grupo de pessoas, percentual alto de pessoas, que promovem a violência para além do estado. Hoje qualquer pessoa que desagrade o presidente, será atacado nas redes sociais até destruir toda reputação dele. É uma agressão verbal, uma violência digital tão forte que esta pessoa vai ter que deixar as redes sociais. E depois estes ataques começam a surgir nas ruas. O Gleen foi atacado nas ruas, a Míriam Leitão deixou de ir a um evento para não ser atacada, a Judith Butler foi atacada nas ruas. O Jean Willys pediu para sair do Brasil porque não agüentava mais os ataques. A Débora Diniz saiu do Brasil, Márcia Tiburi.

Todo dia você vê alguém. Estes dias um digital influencer, Felipe Neto, começa a sofrer ataques absurdos. Todo dia alguém que desagrade os interesses do presidente, existe uma milícia no meio da população, algo que só aconteceu no nazismo e no fascismo, com Mussollini, a atacar pessoas. Então a violência não é mais apenas estatal. São de grupos de pessoas que atacam alguém que contraria os interesses da família presidencial. Isto durante a ditadura militar não teve. Tanto que hoje na imprensa se fala da pós-censura. A censura na Ditadura Militar é a censura estatal, hoje temos a censura da milícia digital ligada à presidência da República. Inclusive com grupos com ampla capacidade de divulgar notícias falsas, com robôs a te atacar ou apoiar quando for o caso. Então é um aparato que realmente é estarrecedor. É um momento altamente inédito na história brasileira.

- Como andam os trabalhos do Mecanismo Estadual de Combate à Tortura?

- Existe o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, que a ministra de Direitos Humanos chegou e cortou a questão salarial, como se a atuação deles fosse voluntária. É impossível num país deste tamanho você ter pessoas que trabalham voluntariamente para ver casos de tortura do Oiapoque ao Chuí, além de ser um grande retrocesso, você ter profissionais que atuem de forma técnica, é claro que ele terá que ser remunerado. Ação voluntária é uma ação de militância, que é muito importante, mas não combina com a ação técnica.

Tem uma outra questão que são as comissões da verdade, que são comissões de anistias da ditadura militar. O que ele fez? Em relação ao Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, que analisa os casos de tortura atuais, o ataque foi brutal, até contrariando tratados internacionais. Inclusive já há uma liminar revogando o decreto presidencial que revogou salários dos peritos. Em relação à Comissão da Verdade, especialmente a de Mortos e Desaparecidos políticos da Ditadura Militar, ele retirou pessoas durante o mandato para colocar pessoas que eram ligadas a grupos que defendem hoje a atuação da Ditadura Militar. Tratando todos os horrores da ditadura militar como coisa absolutamente normal, dizendo inclusive que é democrático.

Então quando você tem uma ditadura que é responsável pela morte e desaparecimento de centenas de milhares de pessoas, que é reconhecida pelo Estado Brasileiro, pela ONU, como um período de exceção ao regime democrático e o atual mandatário diz que este período foi normal, mas que ele defende a democracia, claramente ele não defende a democracia. Ele defende aquele período. Em que sequer a eleição, em que a violenta repressão aos oponentes políticos através de prisão, morte, em que o Congresso Nacional é fechado e não há liberdade de imprensa. Se tudo isto ele diz que havia normalidade, tudo que ele fala que é democracia para ele, é lógico que há uma distorção. Nós temos uma preocupação. E aí você colocar numa Comissão que apura os casos, as violências e os crimes cometidos durante a Ditadura Militar e você coloca pessoas que dizem exatamente o que o presidente diz, você esvazia estas comissões. Há ações por parte do MPF, notas técnicas produzidas pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e que estão para o poder judiciário julgar.

- O que o senhor acha do Pacote de Lei Anticrime?

- O projeto anticrime do ministro Sérgio Moro na verdade é um projeto populista, esvaziado de efeito prático, que tem sido adotado por praticamente todos que passaram pela presidência da República, que é uma forma de não enfrentar o problema. É como você chegar na saúde e dizer que vai resolver tudo dizendo que vai ter médico em  todos os postos, você está sendo populista. Na educação baixar uma lei dizendo que toda criança tem que estar na escola e que as escolas serão boas, você está sendo mentiroso. E você chegar na segurança pública e adotar fatos semelhantes a aumentar penas e outras coisas sem investir numa política pública séria de destinação de recursos, política de valorização profissional, de treinamento profissional, de investimentos em tecnologias, de investimento em pesquisa, em combater situações que facilitam a criminalidade, somente imaginando que aumentar os crimes vai resolver, é só algo extremamente populista. E o pior, todos os em que tem um caso grave de violência, já se faz isto que o Moro está propondo: endurecer as leis. Isto nunca resolveu.

Violência se combate com políticas publicas e não com leis. Leis nós já temos. Se quer combater violência destine recursos. Então o que ele faz? Mais do mesmo. É como se seu filho tivesse doente e você ligasse para o médico e ele mandasse dar 20 gotas de dipirona para ele. Duas horas depois ele está com 38 graus de febre e o médico manda dar 40 gotas. Depois de uma hora, ele ta com 39 graus e ele manda dar 80, daqui a pouco está com uma convulsão de febre e o médico manda dar mais dipirona. É isto que o ministro Moro faz.

É um projeto vazio em alguns aspectos, mas em outros aspectos de um perigo enorme. Eles estimulam o discurso que autoriza a polícia atirar indiscriminadamente e que este discurso já vem sendo adotado nas ruas. Isto transforma a vida do policial em algo insustentável. A gente pensa que é bom para o policial, mas não é. Tanto que os casos de suicídio de policial têm aumentado drasticamente. Você submete este profissional, ao invés dele prestar um serviço publico você diz que ele está em guerra, e é uma guerra que não tem fim. Então o nível de ansiedade e de transtornos ou danos emocionais, psicológicos que uma guerra traz, estes profissionais estão vivendo. E o que é mais grave, quando você entende que você vai passar para a população em geral, criminoso ou não, de que a polícia se te encontrar vai te matar, o que poderia uma ocorrência simples de rendimento na rua, vira num tiroteio até a morte. Quando a polícia é tão letal e tão criminosa quanto os criminosos ,tudo vira guerra. Se o estado não é nenhum pouco diferente do que é a milícia, tráfico ou qualquer outro grupo criminoso, o que os difere?

- O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, extinguiu recentemente o bônus por redução de letalidade. Ou seja, não há mais bônus caso você diminua as mortes. Isto é um incentivo a morte, não?

- É um incentivo a morte.  É a necropolítica, a política de morte adotada por governantes brasileiros. A morte para ele virou apenas efeito colateral da política, não é visto como algo relevante a diminuição de mortes. É algo esperado realmente numa política tão violenta e brutal que o Brasil está vivendo. Tranquilamente o Brasil hoje é visto como algo que tem assustado o mundo. Com certeza somos o caso mais assustador de uma política anti-democrática, brutal, perversa realmente. Em relação a direitos humanos e em relação a ideia de humanidade.

 - O senhor acha que uma forma de se evitar que as futuras gerações tenham este pensamento seria tratar de direitos humanos nas escolas?

- É imprescindível. Precisamos entender que o que nos distingue dos outros animais, havia quem dissesse que era pensar, tanto que a gente estudou na escola os animais racionais e irracionais. Hoje, os novos filósofos defendem que o que nos distingue dos outros animais é a nossa capacidade de nos comunicarmos e de termos o que se chama de “metanarrativas”, que é a nossa história sendo contada e recontada. Qualquer civilização para minimamente ascender precisa estudar historia, filosofia. Quando a gente for estudar história vamos entender que não existe nada que você tenha como seu que não seja a partir de uma base que envolva os direitos humanos. Desde o direito de propriedade. Talvez um dos primeiros a ser reconhecido na luta dos proprietários de terra contra o rei João Sem Terra, 1215 na Inglaterra. E a partir daí toda uma gama de direitos de liberdade de expressão, religiosa, de segurança, de moradia, educação, saúde, voto, democracia, meio ambiente, tantos outros, você sempre vai tratar como direitos humanos. Então praticamente tudo que você entende que é um direito seu advém de uma luta dos direitos humanos.

Nós precisamos ter isto. Inclusive uma fundação nos procurou e pretende vir aqui o quanto antes para apresentar ao estado um projeto de educação em direitos humanos nas escolas de ensino médio, inicialmente pode ser um projeto piloto, depois vire uma política pública, a ideia é chamar vários parceiros, a UFPB, através do seu conselho estadual de educação em direitos humanos; o conselho estadual de direitos humanos e todas as secretaria que de alguma forma tratam de educação, como a secretaria de educação propriamente dita, secretaria de desenvolvimento humano,que trata de educação no sistema socioeducativo, o IFPB que trata de educação no ensino médio, serão contatados para a gente mostrar este projeto, para que isto possa entrar na grade curricular. O estado de São Paulo e Brasília estão implementando este projeto, com a parceria da fundação e a Paraíba deve ser o terceiro estado a ser contatado. Estamos dependendo agora de uma agenda do secretário Aléssio Trindade, para mostrarmos este projeto para que a educação em direitos humanos entre na grade curricular e espero que isto vire uma política publica aqui no estado.

É imprescindível nós entendermos o que são direitos humanos. O aluno que diz que Direitos Humanos é para defender bandido, ele saiba que ele está em uma sala de aula porque alguém defendeu o direito à educação e que o irmão dele está sendo vacinado e a mãe dele ta fazendo pré-natal, devido ao direito a saúde, que alguém teve acesso a um programa habitacional, qualquer nome que seja, porque houve uma luta pelo direito à moradia e principalmente, ele está expondo sua opinião porque alguém lutou muito pela liberdade de expressão. E ele está lendo um jornal porque a liberdade de imprensa é essencial. Todos são direitos humanos.

- Para a gente terminar, eu queria que o senhor fizesse um breve resumo de como está a situação do Porto do Capim. Ali me parece um caso em que a população conseguiu efetivamente valer o seu direito. É verdade esta afirmação? E o que pode ser feito em outras comunidades que às vezes não tem tanta força, digamos assim, para conquistar seus direitos?

-Esta questão dos movimentos sociais, a sua força ou não, suas fraquezas, pontos fortes ou fracos, é algo que a sociologia vai conseguir explicar. E nós do MPF não cabe a gente estarmos criando movimentos sociais ou dizendo como eles vão agir. Mas cabe a gente recebê-los como expressão da democracia que são. Inclusive é uma recomendação do Conselho Nacional do Ministério Público, dizendo que os órgãos do MP em cada espaço receba os movimentos sociais porque eles são a expressão da democracia direta.

 E o caso do Porto do Capim é um dos casos que nós acompanhamos desde o fim de 2014, sempre em integração com a prefeitura, ela vinha com espaço aberto de diálogo muito bom até o ano de 2017. Quando chega no ano passado ela adota uma postura inexplicada, inesperada de licitar um projeto à revelia da comunidade, um projeto que atinge o território da comunidade e dizer que vai implementar este projeto. E a comunidade procurou o Ministério Público Federal, a defensoria Pública da União, a Defensoria Pública do Estado, estes órgãos deram pronta resposta e fizemos recomendações à prefeitura, à Caixa Econômica, entramos com uma ação e num dado momento a prefeitura entendeu que deveria voltar à sua posição inicial, que era correta. E pediu na justiça que nossa ação fosse parada por 60 dias para que a prefeitura negociasse com a comunidade. Eu achei isto um gesto muito bom, muito positivo por parte do poder público municipal, que se em um momento tinha adotado uma postura que eu considerei equivocada, ele reviu sua postura e na terça-feira (17) tivemos uma reunião. A primeira em que sentaram frente a frente comunidade e prefeitura, através da secretária de habitação, Socorro Gadelha, e o procurador do município, Dr. Leon Delacio.

 A comunidade tinha uma proposta pronta, alternativa, que contemplava o projeto da prefeitura, mas em que a comunidade se sentia representada para preservar o seu território ou parte dele. A comunidade aceitava ceder parte do seu território desde que as pessoas que moravam nesta parte fossem relocadas para dentro da própria comunidade, ou seja, não perdessem a sensação de pertencimento ou território, e apresentaram uma ideia de que o projeto do Parque Sanhauá fosse de uma maneira que a comunidade também fosse parte dele. Não fosse um projeto para João Pessoa ir lá ver, mas para que João Pessoa fosse junto ver a comunidade também. E que a comunidade também pudesse desfrutar nem só visualmente do projeto, mas do ponto de vista do desenvolvimento que trará, inclusive econômico. Se você aumenta a quantidade de turismo visitando aquela área, há um desenvolvimento econômico. Então, alguém que mora lá há 70 anos, no momento que vê o desenvolvimento econômico, ficar de fora, não faz sentido.

A minha percepção, é de que a prefeitura esteve muito aberta para toda a apresentação da comunidade, tanto que ao final a prefeitura pediu para enviar uma arquiteta para ir na comunidade, junto da comunidade para entenderem in loco qual era a proposta da comunidade. E nós acertamos também o seguinte, algo que é simbólico, mas muito importante. O projeto do Parque Sanhauá foi apresentado nas mídias, em espaços da prefeitura, mas não foi apresentado à comunidade, isto era preciso. Isto vai acontecer hoje (24) e hoje mesmo recebemos o contato da prefeitura informando que queria reunir de novo com a comunidade, que já estava compreendendo o que a comunidade pretendia e que queria apresentar uma contra-proposta, inclusive detalha, que para mim é muito positivo ver o interesse do poder público. É como você disse, isto graças à capacidade de mobilização.  É imprescindível esta democracia direta, as pessoas buscarem de forma ordenada, não violentas, mas firmes, que têm o direito de participar das discussões das políticas publicas que os afetam.

*matéria publicada originalmente na edição impressa de 29 de setembro de 2019