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Ética e impunidade voltam ao debate

publicado: 03/11/2025 09h05, última modificação: 03/11/2025 09h05
Classificada pela classe política como correção técnica, atualização da norma preocupa juristas e ativistas
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Legislação endureceu regras para “varrer” corruptos do poder | Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

por Eliz Santos*

Há leis que nascem de gabinetes, e há leis que nascem das ruas. A Lei da Ficha Limpa pertence à segunda categoria. Carregada de simbolismo e construída sob o clamor de um país cansado de ver a corrupção atravessar décadas impune, ela transformou indignação coletiva em ferramenta jurídica e inaugurou uma nova régua ética na política brasileira. Seu princípio era simples, mas profundo: quem fere o patrimônio público, abusa do poder ou enriquece ilicitamente não deve estar entre aqueles que pedem votos para governar.

Quinze anos depois, uma nova versão da norma reacende o debate. A Lei Complementar nº 219/2025, sancionada no fim de setembro pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, muda a forma de contagem do prazo de inelegibilidade previsto na Ficha Limpa — e, segundo especialistas, pode abrir brechas para o retorno precoce de políticos condenados.

Origem e legado

Aprovada em 2010, a Ficha Limpa surgiu de um projeto de iniciativa popular que mobilizou o país e reuniu mais de 1,5 milhão de assinaturas, resultado da articulação de organizações como o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE). O texto redefiniu parâmetros para as candidaturas, ao criar 14 hipóteses de inelegibilidade que abrangem casos de enriquecimento ilícito, abuso de poder e crimes contra a administração pública.

Entregue ao Congresso Nacional em 9 de dezembro — Dia Mundial de Combate à Corrupção —, o projeto simbolizou a força da cidadania organizada. Os efeitos foram imediatos. A Ficha Limpa endureceu as regras, ampliou prazos de inelegibilidade e mudou expectativas dentro e fora dos partidos. Um levantamento da CNN Brasil, com dados do Tribunal Superior Eleitoral (STF), mostrou que, de 2014 a 2024, a lei impediu quase cinco mil candidaturas em todo o país — mais de 8% do total de postulantes no período.

Retrocesso

As alterações recentes, embora apresentadas como um ajuste técnico, despertaram interpretações opostas no meio jurídico. Especialistas avaliam que a mudança promete gerar mais segurança jurídica, mas também representa um recuo no sentido moral e simbólico da norma. Para alguns juristas, a alteração enfraquece o papel pedagógico da Ficha Limpa, ao flexibilizar o rigor das sanções impostas a quem comete crimes contra a administração pública.

Um dos idealizadores da Lei da Ficha Limpa, o advogado e ex-magistrado Márlon Reis, avalia que a mudança representa um enfraquecimento do propósito original da legislação. Para ele, ao alterar o marco de início da contagem do prazo de inelegibilidade, a nova redação compromete o caráter moralizador da lei.

“A nova redação da Lei da Ficha Limpa, ao modificar o marco de início da contagem do prazo de inelegibilidade, não constitui um aprimoramento técnico. O ordenamento já possuía mecanismos eficazes para evitar que o afastamento eleitoral resultasse em prazos desmedidos. A alteração produz, na prática, um enfraquecimento da finalidade preventiva da lei, justamente porque permite que o tempo de tramitação recursal erosione o efeito moralizador originalmente pretendido. A Ficha Limpa foi criada para impedir que condenados por delitos contra a administração pudessem permanecer em disputa eleitoral enquanto prolongavam processos. Por isso, considero esta mudança um retrocesso moral e institucional, ainda que apresentada sob o discurso de correção técnica”, crava.

Entre justiça e reabilitação

A versão atualizada da Lei da Ficha Limpa reacende questionamentos que acompanham o país há décadas: como equilibrar justiça e reabilitação política? Sob o desafio de consolidar a ética pública, até que ponto o Brasil está disposto a preservar os princípios que inspiraram uma de suas maiores conquistas cívicas?

Especialistas veem tática de autodefesa e risco de desmobilização

Para o cientista político Darcon Sousa, a mudança reflete um movimento mais amplo de autodefesa da classe política. “Trata-se de mais uma ação do sistema político no sentido de se autoproteger e de se autorregular. Estamos assistindo a uma resistência constante do Legislativo às prerrogativas do Judiciário, o que se expressa em leis que atenuam o rigor sobre crimes cometidos por políticos, especialmente num contexto em que a participação deles no orçamento público cresce, vertiginosamente, desde as emendas parlamentares”, analisa.

Lei da Ficha Limpa foi aprovada em 2010, após intenso engajamento popular no Brasil | Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

Questionado sobre possível pressão de grupos políticos interessados em reduzir o alcance da lei, Sousa afirma: “É evidente. São os mesmos grupos políticos que tentaram emplacar a chamada PEC da Blindagem, que só não prosperou em razão da grande reação negativa que teve na sociedade — também repercutida no Senado Federal, que barrou a intenção dos deputados de promoverem um retrocesso injustificável”.

Márlon Reis também identifica semelhanças entre a nova redação da Ficha Limpa e outras iniciativas legislativas que buscam suavizar mecanismos de controle e responsabilização.

“Sim, há paralelos nítidos. Embora distintas em seu conteúdo específico, ambas operam na mesma direção: a de reconstituir um ambiente de proteção da classe política frente aos mecanismos de responsabilização e ao escrutínio público. Depois de um período histórico marcado por maior vigilância social e institucional sobre a probidade dos agentes públicos, observa-se, agora, um movimento de acomodação, no qual se busca reduzir os custos decorrentes de condenações e investigações. O que se pretende, em última análise, é diminuir a eficácia dos instrumentos que exigem integridade como requisito para o exercício do poder”, opina.

O advogado e doutorando em Políticas Públicas Cosmo Júnior avalia que o novo texto “não representa um avanço, mas uma forma de reduzir o tempo de inelegibilidade”, já que antecipa o início da contagem do prazo. Ele destaca que, embora o debate jurídico seja legítimo, “as alterações parecem atender mais aos interesses da classe política, especialmente daqueles que têm histórico de conflitos com a Ficha Limpa”.

Para o pesquisador, o contexto revela um momento de autoproteção no Congresso. “Há um contexto político que ajuda a explicar o momento em que o Congresso decidiu alterar a contagem da inelegibilidade. No livro ‘A Revolução dos Bichos’, de George Orwell, há um trecho que diz ‘todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros’. O contexto da frase é um ambiente onde as regras são relativizadas ou editadas para beneficiar quem está no poder. Mesmo saindo da literatura para a realidade, parece-me que, no Brasil, o contexto é um pouco parecido. Há poucos meses, assistimos à Câmara dos Deputados aprovar uma proposta de Emenda à Constituição — barrada pelo Senado — que tinha como objetivo protegê-los. Diante desse contexto, parece-me que as alterações normativas atendem apenas aos interesses da classe política e, principalmente, daqueles que já têm uma relação conflituosa com a Ficha Limpa”, aponta.

Efeitos

Quanto aos reflexos nas próximas disputas, Darcon Sousa acredita que o impacto será limitado, mas alerta para o simbolismo do retrocesso.

“Os efeitos imediatos para 2026 podem não ser grandes, mas toda flexibilização em leis que preservam a moralidade administrativa é danosa à cidadania. Isso acentua a anomia política — fragilização de valores que sustentam a vida coletiva — e pode gerar comportamentos antissociais, deteriorar instituições e aumentar a instabilidade”, adverte.

Ativismo popular

Para movimentos sociais, o ponto mais sensível não está apenas no mérito da mudança, mas na mensagem política que ela transmite. A Ficha Limpa é lembrada como símbolo de conquista popular — e qualquer alteração que reduza seu alcance, dizem ativistas, pode desestimular futuras mobilizações e reforçar a ideia de que o sistema “sempre dará um jeito” de se recompor.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 2 de novembro de 2025.