A democracia brasileira pode estar prestes a virar mais uma página de sua história. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 12/2022, recém-aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, reacende um dos debates mais sensíveis do sistema democrático: o equilíbrio entre a estabilidade institucional e a renovação do poder. O texto sugere o fim da reeleição para cargos do Executivo; estabelece mandatos únicos de cinco anos para presidentes, governadores, prefeitos e parlamentares; e unifica todos os pleitos eleitorais, a partir de 2034.
Mais do que uma simples atualização das regras, a proposta representa a ruptura do modelo vigente desde 1997, quando a reeleição foi incorporada à Constituição, como forma de garantir continuidade administrativa. Passadas quase três décadas, diante das distorções causadas pelo uso da máquina pública e da desigualdade entre candidatos, ganha força a ideia de resgatar a alternância no poder como princípio democrático central.
Especialistas apontam que, embora ofereça avanços em termos de isonomia eleitoral, a PEC impõe desafios importantes. Entre eles, estão os riscos de descontinuidade de políticas públicas, em ciclos de governo mais curtos; o enfraquecimento do debate local, diante de eleições simultâneas; e a necessidade de que o Estado desenvolva mecanismos mais robustos para garantir a implementação de projetos de longo prazo, independentemente das trocas de gestão.
Em um cenário político marcado por fragmentação partidária e baixa previsibilidade, a PEC não apenas altera o calendário eleitoral — ela coloca em xeque o modelo de governança adotado nas últimas décadas e convida o país a repensar os caminhos de sua democracia.
Freio da máquina pública
Instituída em 1997, pela Emenda Constitucional (EC) no 16, a possibilidade de reeleição para cargos do Executivo sempre esteve cercada de controvérsias. Para o especialista em Direito Eleitoral Renato César Carneiro, a medida é um dos maiores exemplos de raciocínio enganador da história política brasileira. “A Emenda de 1997 é um dos maiores casuísmos eleitorais da história do Brasil. Foi feita sob medida para favorecer a reeleição do então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB)”, afirma. Para ele, a reeleição nasce com um vício que compromete a legitimidade do instituto.
Essa visão é compartilhada por outros especialistas, os quais apontam que, desde sua implantação, a reeleição tem demonstrado um claro favorecimento para quem ocupa o cargo, ao permitir o uso da estrutura administrativa em benefício da própria candidatura, sem necessidade de afastamento.
Segundo o cientista político Lúcio Flávio de Vasconcelos, a adoção da reeleição no Brasil seguiu o modelo norte-americano, permitindo apenas uma recondução ao cargo. No entanto, aqui, a proposta teria sido fruto da pressão de setores do Congresso Nacional, que buscavam garantir a permanência de Fernando Henrique Cardoso no poder, o que reforça a percepção de que se tratou de uma mudança institucional com motivações específicas. “Desde que foi implantada, a reeleição tem demonstrado um nítido favorecimento para quem está no exercício do poder, pois [o gestor] não precisa se afastar do cargo e lança mão de todo o aparato governamental em seu favor”, acrescenta.
Diante desse cenário, Renato César Carneiro avalia que a PEC nº 12/2022 surge como uma resposta aos vícios do atual modelo e corrige distorções institucionais, ao sinalizar um retorno às raízes constitucionais do país. “Ela representa um avanço importante na consolidação da democracia brasileira. Ao resgatar a tradição constitucional centenária de vedar a reeleição para chefes do Executivo, ela promove maior alternância no poder, reduz o uso da máquina pública em benefício de candidatos à reeleição, combate desigualdades no processo eleitoral e contribui para diminuir a instabilidade e a corrupção que têm marcado nossa política desde a introdução da reeleição no país”, argumenta.
Unificação de pleito representa risco aos debates municipais
O doutorando em Políticas Públicas Cosmo Junior reconhece aspectos positivos na proposta, mas aponta possíveis efeitos colaterais. “Um risco das eleições unificadas é que o foco se desloque para o embate nacional, enquanto a escolha de representantes municipais, peça-chave na execução de políticas públicas após a Constituição de 1988, perca espaço no debate”, alerta.
Outro ponto sensível, segundo ele, é a própria concentração de todos os pleitos em um único ano, o que pode gerar sobrecarga no processo eleitoral e dificultar o debate sobre temas locais. “Nas eleições municipais, por exemplo, o foco tende a ser diluído. Quando se vota para todos os cargos ao mesmo tempo, há risco de enfraquecimento do debate público sobre as demandas das cidades”, adverte.
Essa preocupação também é compartilhada pelo cientista político Lúcio Flávio de Vasconcelos, que aponta prejuízos diretos para o eleitor. “Acredito ser muito prejudicial para o eleitor brasileiro. Imagine uma única eleição em que ele terá de escolher, ao mesmo tempo, vereador, prefeito, deputado estadual, deputado federal, senador, governador e presidente da República. É uma sobrecarga de decisões que dificulta o discernimento e compromete a qualidade do voto”, avalia.
Para ele, o sistema atual, com eleições separadas, é mais adequado, porque permite debates específicos sobre os problemas locais, que são muito distintos dos desafios estaduais e nacionais. “O grande risco da unificação é a contaminação dos temas nacionais com os locais, como se tivessem a mesma origem e solução. São realidades completamente diferentes, que exigem análises e propostas também distintas”, pontua.
Longo prazo
A mudança na duração dos mandatos também levanta preocupações entre especialistas em Administração e Políticas Públicas. Acrescentar um ano ao mandato — como propõe a PEC nº 12/2022 — não garante, por si só, a efetividade das políticas públicas.
“Ter mais tempo de gestão não é sinônimo de sucesso na implementação e na consolidação de políticas públicas. Para que isso ocorra, é fundamental que Municípios, Estados e União desenvolvam capacidades institucionais, administrativas, técnicas e políticas que sejam determinantes para a ação governamental”, analisa Cosmo Júnior.
Conforme o especialista, o sucesso do novo modelo dependerá da capacidade de planejamento e da profissionalização da gestão pública. Cosmo Júnior destaca que já existem, no Brasil, mecanismos institucionais e legais que visam garantir a continuidade e a qualidade das políticas públicas, mesmo diante de mudanças de gestão. Entre eles, estão:
- Controle social — assegurado pela Constituição Federal de 1988, que permite a participação da sociedade, desde a definição até a avaliação das políticas;
- Controle externo — exercido pelos Tribunais de Contas, por meio de auditorias operacionais;
- Atuação do Ministério Público — por vias judiciais ou extrajudiciais, especialmente em ações voltadas ao combate à pobreza e à exclusão social;
- Controle interno — realizado no âmbito da própria administração pública.
Esses instrumentos, podem e devem ser fortalecidos para proteger projetos de Estado e garantir que políticas públicas estruturantes não fiquem reféns das mudanças de governo ou de interesses eleitorais.
Impactos
A proposta aprovada na CCJ do Senado ainda precisa ser votada em dois turnos no plenário da Casa e, em seguida, ser apreciada pela Câmara dos Deputados. Caso receba o aval do Congresso, a PEC será promulgada ainda em 2025. As mudanças previstas serão implementadas de forma escalonada.
Para Renato Carneiro, os principais desafios não são de natureza jurídica, mas política, já que a PEC expressa uma decisão estratégica do Congresso Nacional. Do ponto de vista jurídico, a expectativa é de que a mudança traga maior estabilidade institucional e reduza conflitos judiciais durante os processos eleitorais. Ao romper com a lógica da reeleição, a proposta pode limitar o uso da máquina pública por candidatos no exercício do cargo, o que tende a fortalecer a isonomia entre os concorrentes e a confiança da sociedade no processo democrático.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 13 de julho de 2025.