por Lúcio Vilar
Especial para A União
Ex-deputado é o primeiro entrevistado da “Trilogia Desterrados” que A União publica a partir de hoje
Desde que renunciou ao terceiro mandato de deputado federal pelo PSOL, o baiano Jean Wyllys mora em Berlim, na Alemanha, onde cursa pós-graduação e estuda o fenômeno das fake-news
“Onde é minha casa? Difícil dizer. Tenho vivido com uma mala na mão, descendo e subindo de aviões. Sou de todos os lugares e de lugar nenhum”. A narrativa, na primeira pessoa, é de Jean Wyllys em seu novo livro (“O que será - a história de um defensor de Direitos Humanos no Brasil”), lançado no último dia 30 de julho. É um ‘passeio’ por sua trajetória de vida, desde o nascimento em Alagoinhas-BA até a renúncia ao terceiro mandato de deputado federal pelo PSOL e o “autoexílio” em Berlim, na Alemanha, onde encontra-se radicado, cursando pós-graduação (nível doutorado) sobre o fenômeno das ‘fakenews’. Confira, a seguir, entrevista exclusiva para A União, concedida através de um aplicativo privado de mensagens.
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A entrevista
AU - Entre o assassinato de Marielle – um abalo muito forte para o sr. do ponto de vista pessoal, segundo já revelou – e a decisão de renunciar ao mandato e deixar o Brasil, o que representou a ‘gota d’água’ nesse processo?
JW - Acaba de sair o meu quinto e mais novo livro - “O que será - a história de um defensor de Direitos Humanos no Brasil”. Nele, eu revelo os detalhes da minha decisão de não investir em meu terceiro mandato em função de graves ameaças de morte e da pesada campanha difamatória que me transformou em pessoa odiada pela ampla maioria dos eleitores de Bolsonaro em todo o país. Este é a penas um aspecto do livro, diria até que é o menos atraente e menos significativo, se comparado a todo o resto de minha vida até aqui. O livro é uma abordagem da história do Brasil que corresponde aos meus anos de existência. Ou melhor, é uma abordagem da história do Brasil a partir de minha história e desde a minha perspectiva. No livro, eu mostro, por exemplo, como a minha quase morte por volta de um ano de idade, em razão de uma grave desnutrição, correspondia a um indicador social brasileiro: a alta taxa de mortalidade infantil entre as famílias pobres e miseráveis na década de 1970, apesar do que a ditadura militar chamou de “milagre econômico”. Por falar em ditadura militar, eu também conto como ela se fez presente na vida de pobres trabalhadores informais como meus pais e na minha vida. Ou seja, eu relaciono os fatos que constituem minha história até aqui aos fatos históricos mais amplos, com análises e reflexões sem jargão acadêmico. Por outro lado, eu também conto quando e como eu começo a intervir diretamente nos fatos históricos mais amplos, contribuindo para dar novos sentidos à história do país. Tudo isso de uma maneira simples e despretensiosa, que é para me comunicar com o maior número de pessoas possíveis, mas não sem profundidade nem cuidado com a palavra escrita, afinal eu sou um jornalista, escritor e gosto de literatura. Conta uma história que possa inspirar - e contribuir com qualquer pessoa que deseje se mover socialmente e defender os Direitos Humanos.
AU - Se a caracterização de “autoexílio” não parece a expressão mais adequada, como o sr. prefere que se refiram à sua condição de expatriado?
JW - Não sei exatamente como chamar a experiência a que me fui obrigado como forma de sobreviver, de continuar vivo. Autoexílio? Não sei... Pois as ameaças de morte me obrigaram a um desterro forçado, mesmo que não haja formalmente no Brasil uma pena de desterro. Quando não investigou as ameaças de morte contra, quando se calou diante das minhas denúncias, quando ignorou o relatório da CIDH da OEA, o Estado brasileiro me impôs indiretamente uma pena de desterro ou exílio. E esse mesmo Estado, sob a gestão Bolsonaro há mais de seis meses, vem impossibilitando qualquer chance de retorno, na medida em que o presidente e seus filhos governam por meio de uma máquina de fakenews cuja vítima principal sou eu e, por causa dessas mentiras e calúnias, as ameaças de morte prosseguem, sob o silêncio complacente da Polícia Federal e do Ministério Público Federal.
AU - O sr. acha que sua situação, assim como da antropóloga Débora Diniz e da escritora e filósofa Márcia Tiburi - que também deixaram o país pressionadas por ameaças de morte - desnuda os limites e impasses do estado de direito e da fragilidade da democracia que temos, hoje, no Brasil?
JW - Essas instituições (Polícia Federal e Ministério Público Federal) estão aparelhadas por pessoas que não as deixam agir republicanamente: estão transformando-as em extensões de um governo em deriva fascista. E isso é muito grave! Como pode a PF e o MPF se calarem diante das mentiras espalhadas pelo perfil apócrifo Pavão Misterioso e convertidas em “verdade” por uma “imprensa” extrema-direita, como o esgoto O Antagonista? Por que o MPF e a PF ainda não começaram uma investigação sobre esses criminosos que nos difamam, ameaçam e nos impuseram o desterro? Só há uma resposta: essas instituições abrigam cúmplices dos criminosos.
AU - Em que momentos a saudade do Brasil é maior?
JW - Por conta do desterro, esta é a primeira vez que eu moro fora e não é fácil. Você precisa se adaptar, inclusive à língua, à comida, aos costumes. Ficar longe da família e dos amigos também é difícil. Esse ano foi o primeiro na minha vida em que eu não passei São João na Bahia, com a minha mãe e meus irmãos. Mas, por outro lado, eu estou bem, e me sinto seguro. Não preciso mais andar em carro blindado e acompanhado por uma escolta armada para me proteger das ameaças de fascistas, bolsonaristas ou milicianos. Não sou mais xingado por idiotas que acreditaram na última fakenews sobre mim espalhada pelas redes sociais ligadas ao presidente da República. É triste que eu tenha sido forçado a deixar o país por causa disso, mas foi a decisão correta, porque, como me disse o Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai, o Brasil não precisa de mártires e eu preciso continuar vivo.
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“O mundo vê a Lava Jato como uma ação mafiosa"
Ex-deputado diz que revelações do The Intercept Brasil desmoralizaram internacionalmente a operação
Residindo atualmente na Europa, Jean Wyllys diz que o mundo tem visto com espanto o desenrolar dos acontecimentos no Brasil. Ele afirma que a “Vaza Jato” tem sido importante para revelar os bastidores da operação e garante que o mundo vê hoje a Lava Jato como um complô contra a soberania nacional.
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AU - O que se comenta, no exterior, sobre essa guinada à extrema-direita experimentada pelo Brasil?
JW - Aqui, na Europa, as pessoas estão muito cientes do que acontece no Brasil. Bolsonaro é repudiado unanimemente por pessoas de esquerda, centro e até por parte da direita. As pessoas não conseguem acreditar que esse energúmeno fascista, essa pessoa má, cheia de ódio, ignorante, incapaz de articular uma ideia, despreparada, inculta, autoritária, mesquinha e perigosa seja nosso presidente da República.
AU - Como definiria a natureza desse governo?
JW - O governo Bolsonaro é o pior governo eleito da história do Brasil. É um governo de pessoas incompetentes, burras, sem qualquer preparo ou qualificação, corruptas, fanáticas, fundamentalistas, delirantes. O ministério de Bolsonaro é uma turma de malucos. Tem terraplanistas, teóricos da conspiração, lobistas da indústria das armas, fundamentalistas religiosos, militares nostálgicos da ditadura, bandidos. É um governo que teve em poucos meses mais escândalos que outros governos ruins em dois mandatos de quatro anos. Suas prioridades de gestão são destruir o meio ambiente, liberar as armas e os agrotóxicos, afrouxar a legislação de trânsito para proteger as pessoas que usam o carro como se fosse uma arma, se solidarizar com assassinos de mulheres, negar a mudança climática, combater o comunismo imaginário e outros fantasmas, destruir a previdência e acabar com a aposentadoria, espalhar ódio e fakenews, desfinanciar as universidades, destruir a educação pública. É um governo perverso, que vai provocar danos tão grandes que vai parecer que o Brasil sofreu uma calamidade bíblica, um terremoto ou uma explosão nuclear. Eu estou apavorado e espero que a sociedade reaja logo, antes de que só fiquem ruínas do que alguma vez foi um país feliz.
AU - Como foi sua acolhida?
JW - Os exilados, como eu, somos muito bem recebidos. Em poucos meses, já fui convidado a palestrar na Sorbonne, em Paris; na London SchoolofEconomic, em Londres; no Parlamento Europeu, em Bruxelas; na Universidade de Coimbra, em Portugal; em várias universidades da Alemanha, dos Estados Unidos, na Colômbia, e em muitos outros lugares. Em Paris, participei junto a Chico Buarque da leitura das cartas para Lula. Sou bolsista da Open Society Foundation. Esta instituição tem interesse nos estudos sobre fakenews que decidi fazer, juntando ampla revisão bibliográfica sobre o tema à experiência e reflexões de quem foi e é vítima delas e teve que desenvolver estratégias para contê-las; por isso, aprovou o projeto que apresentei, e está financiando esse estudo. Além disso, estarei como professor-pesquisador de Harvard por três meses, dentro de um programa desta universidade voltado para intelectuais em risco em seus países de origem. Ou seja, não estou sozinho e há muita solidariedade no mundo inteiro.
AU - Como está acompanhando as revelações da VazaJato pelo site The Intercept?
JW - A Vaza Jato é necessária. É significativo que essa série de reportagem tenha sido conduzida por um jornalista estrangeiro residente no país. A imprensa comercial brasileira, copartícipe do golpe contra Dilma, jamais conduziria algo dessa envergadura, até porque a Vaza Jato também expõe as relações de Moro e Dallagnol com essa imprensa. A Vaza Jato desmoralizou internacionalmente a Lava Jato e mostrou que não só Moro e membros do MP, mas também membros da PF e juízes dos tribunais superiores são criminosos cínicos, facínoras disfarçados de “homens de bem”. A Lava Jato é vista hoje pelo mundo democrático como um complô contra a soberania nacional; como uma ação mafiosa que prendeu Lula injustamente (e para nosso espanto, este segue preso mesmo depois do que já foi revelado) e que deu lugar ao fascismo. Esperamos que a parte do MP e do Judiciário não contaminada por esse foco de podridão, reaja e faça a justiça que tem que ser feita.
AU - O presidente Bolsonaro tem estarrecido até pessoas de centro e da própria direita com suas últimas declarações...
JW - E, por falar em fascismo, a monstruosidade de Bolsonaro que nos últimos dias tem chocado muito mais gente não é uma novidade para mim. Eu a aponto há muito tempo, sou vítima dela há anos, mas, poucos se importavam ou me ouviam porque a homofobia social impedia a maioria de me ver como uma vítima dele e a levava a concordar com ele. Sei que muita gente não vai gostar de ler isso, porque tem dificuldade de admitir seus erros e de ver a si mesma como uma homofóbica social que no fundo concordava com Bolsonaro antes que sua (dele) metralhadora giratória se voltasse para ela. Não vai gostar, mas mesmo assim vai ler, porque eu jamais vou deixar de dizer. A minha arma é o que a memória guarda.
AU - Alguma perspectiva de retorno ao Brasil?
JW - Quando as instituições da República estiverem funcionando de novo e o fascismo e as milícias não estiverem mais dando as cartas, eu poderia voltar. Nesse dia, eu volto.
*publicado originalmente na edição impressa de 11 de agosto de 2019