O modo como o Estado funciona determina a qualidade de vida de milhões de brasileiros — nas salas de aula, nos hospitais, nas ruas. É esse funcionamento que a reforma administrativa pretende repensar. Em tramitação no Congresso Nacional, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) no 32 visa modernizar o serviço público, mas também gera dúvidas sobre seus impactos na gestão e no funcionamento do Estado brasileiro.
Elaborada por um Grupo de Trabalho (GT) da Câmara dos Deputados, a nova proposta busca tornar o Estado mais eficiente, dinâmico e orientado por resultados. Suas diretrizes alcançam não apenas a administração federal, mas também os serviços públicos estaduais e municipais.
A reforma propõe mudanças estruturais em quatro eixos principais: eficiência na administração pública, com metas e foco em resultados; direito à inclusão digital, por meio da ampliação do governo eletrônico; profissionalização e reestruturação das carreiras do Poder Executivo; e eliminação de privilégios, como a aposentadoria compulsória de juízes, promotores e procuradores. O objetivo central é reduzir desperdícios, fortalecer a cultura de desempenho e promover um Estado mais ágil e responsivo.
Segundo os autores da PEC, a proposta busca enfrentar entraves históricos, como baixa maturidade da governança, estruturas administrativas fragmentadas, deficiências tecnológicas e a ausência de mecanismos eficazes de gestão por desempenho.
Monitoramento
Um dos pilares da proposta é a implantação de uma gestão estratégica, orientada por resultados, com metas de desempenho para órgãos e servidores. O texto prevê instrumentos de avaliação periódica de políticas públicas, permitindo ao governo medir o impacto das ações e ajustar programas, conforme evidências e indicadores.
Para o professor Carlos Pessoa Aquino, do Departamento de Direito Público da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), a proposta representa um passo importante rumo à modernização do Estado brasileiro, mas ainda enfrenta lacunas estruturais significativas. “É fundamental que a reforma seja acompanhada de medidas que garantam a eficiência, a transparência e a participação cidadã. Além disso, é necessário abordar questões como a meritocracia, a capacitação dos servidores e a gestão de recursos humanos, para que a reforma seja efetiva e atenda às necessidades da sociedade”, destaca.
Gestão de recursos
Outro eixo central da reforma é o fortalecimento da qualidade do gasto público, com incentivo à racionalização de despesas e regras mais rígidas para a execução orçamentária. A PEC também propõe mudanças nos critérios de ingresso e progressão na carreira pública, ampliando a possibilidade de contratações temporárias e revisando cargos comissionados, com o argumento de tornar a administração mais flexível e menos onerosa.
Impactos e riscos
As mudanças previstas repercutem, diretamente, nos municípios, especialmente os de menor porte. O secretário-executivo da Federação das Associações de Municípios da Paraíba (Famup), Pedro Dantas, aponta que o debate se distanciou do objetivo original.
“Essa PEC surge para dar eficiência, discutir governo digital e eliminar privilégios. Mas me preocupa o foco excessivo na questão salarial. É muito difícil atrair profissionais qualificados para cargos nos municípios, onde os salários já são baixos se comparados à iniciativa privada”, afirma.
Para ele, o foco deveria ser o combate a privilégios e não o achatamento das carreiras. “Precisamos combater os privilégios e as nomeações inadequadas, mas sem achatar salários. É preciso ter cuidado com isso, porque os prefeitos não pagam salários maravilhosos, e a reforma não pode agravar essa realidade”, completa.
Os efeitos da reforma, entretanto, não se limitam às estruturas locais. O professor Carlos Pessoa Aquino destaca que os impactos podem ser sentidos em diversas frentes da máquina pública. Ele avalia que a proposta tem potencial para tornar a administração mais flexível e eficiente, mas alerta que, sem garantias sólidas, há riscos de precarização das carreiras e de perda de qualidade no atendimento à população.
“Os impactos podem ser percebidos em diferentes dimensões do Estado. Por um lado, a proposta promete ampliar a flexibilidade e a eficiência na gestão pública, otimizando o uso de recursos e melhorando processos internos. Por outro, traz riscos concretos de precarização das carreiras e de enfraquecimento da estabilidade, o que pode comprometer a continuidade e a qualidade dos serviços oferecidos à população. O resultado final dependerá, diretamente, do modo como a reforma for implementada e do compromisso dos gestores com o interesse público”, analisa.
A servidora pública Isabel Medeiros ressalta a importância da estabilidade e do compromisso com o interesse coletivo na manutenção de um serviço público eficaz. “Ao flexibilizar direitos e abrir brechas para contratações temporárias e vínculos precários, fragiliza-se, justamente, esses pilares. Em vez de valorizar o servidor que dedica sua vida ao serviço público, ela [a reforma] cria um cenário de insegurança e dependência, no qual o desempenho e a permanência podem ficar à mercê de indicações políticas ou de gestores de ocasião”, reclama.
Na visão de Isabel Medeiros, o impacto não atinge apenas os servidores, mas, sim, a população como um todo. “O servidor público não é um privilegiado — é um protetor da sociedade. É ele quem garante que a escola, o hospital, o posto de saúde e a assistência social continuem funcionando, independentemente de quem ocupe o poder. Enfraquecer o serviço público é enfraquecer o próprio Estado e colocar em risco a continuidade e a imparcialidade das políticas públicas. Por isso, defendo um debate sério e responsável sobre melhorias na gestão pública”, diz.
Equilíbrio entre modernização e valorização é solução ideal
O debate segue dividido entre a necessidade de modernizar o Estado e a preservação das garantias dos servidores. Para Carlos Pessoa Aquino, a proposta ainda precisa encontrar um equilíbrio mais preciso entre eficiência administrativa e valorização dos profissionais do serviço público.
“Embora a busca por eficiência seja crucial, é igualmente importante garantir que os servidores sejam valorizados e reconhecidos pelo seu papel fundamental no funcionamento do Estado. Isso envolve remuneração justa, capacitação contínua e boas condições de trabalho — elementos essenciais para a prestação de serviços públicos de qualidade”, pondera.
O especialista enfatiza que o sucesso da reforma dependerá não apenas das mudanças legais, mas de uma transformação cultural.
“As leis são fundamentais para estabelecer um marco regulatório claro e eficaz, mas a implementação dessas leis requer uma mudança de cultura dentro da administração pública. É necessário que os gestores públicos estejam comprometidos com a eficiência, a transparência e a participação cidadã para que a reforma seja bem-sucedida,” destaca.
Entidades sindicais têm se manifestado contrariamente à proposta. Para Fernando Freitas, coordenador do Sindicato dos Trabalhadores da Educação Tecnológica da Paraíba (Sintef-PB), a medida enfraquece o caráter técnico da gestão pública e pode abrir espaço para interferências políticas.
“Nossa avaliação é que a reforma administrativa representa um ataque à moralidade nos serviços públicos. Ela atende aos anseios do capital e vai favorecer políticos, diminuindo a qualidade dos serviços públicos e aumentando a possibilidade de apadrinhamento e corrupção”, opina.
O posicionamento é compartilhado por outras categorias, como os trabalhadores dos Correios, que também veem a PEC como um retrocesso para o serviço público. O coordenador do Sindicato dos Trabalhadores em Correios e Telégrafos na Paraíba (Sintect-PB), Tony Sérgio, reforça que a proposta ameaça o acesso universal e gratuito a direitos essenciais.
“Nós somos totalmente contrários a essa nova PEC. Essa PEC é um desmonte do serviço público. Vai acabar com concursos, destruir carreiras e abrir caminho para a privatização de serviços essenciais, como Saúde e Educação”, critica.
Mobilizações
O movimento sindical também tem se articulado em todo o país para pressionar o Congresso Nacional e denunciar os possíveis impactos da proposta.
Ontem, a Central Única dos Trabalhadores da Paraíba (CUT-PB) e o Fórum Paraibano em Defesa do Serviço Público — que reúne sindicatos diversos — realizaram um ato contra a reforma administrativa em Patos, no Sertão paraibano.
Em âmbito nacional, uma paralisação de servidores públicos é prevista para começar na terça-feira (28). A mobilização segue até a quarta-feira (29), com uma marcha, na capital federal, em defesa do serviço público e dos direitos trabalhistas.
As mobilizações reforçam o apelo das entidades por mais diálogo com o Congresso Nacional e com a sociedade, na tentativa de garantir que qualquer mudança na estrutura do Estado preserve o caráter público, democrático e essencial dos serviços oferecidos à população.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 26 de Outubro de 2025.