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“independência ou morte”

Obra traçou a identidade nacional

publicado: 08/09/2025 08h49, última modificação: 08/09/2025 08h49
Pintura do paraibano Pedro Américo reflete mais o fim do Império do que o contexto social por trás do grito do Ipiranga
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Foto: Pedro Américo/Reprodução

por Eliz Santos*

No imaginário nacional, o 7 de setembro é quase sempre lembrado pela cena eternizada no quadro “Independência ou Morte”, também conhecido como “O Grito do Ipiranga”, do paraibano Pedro Américo de Figueiredo e Mello. A tela, pintada em Florença, na Itália, e concluída em 1888 — 66 anos após a proclamação da Independência —, tornou-se a representação oficial do ato que marcou a separação política do Brasil de Portugal. Mas, afinal, o que há de verdade e o que foi idealização artística naquela obra?

Segundo o historiador Fabrício Morais, a resposta é clara: quase nada no quadro corresponde ao que de fato ocorreu. “Praticamente nada, na tela de Pedro Américo, é real. O quadro é uma representação idealizada do momento em que Pedro I declarou a independência do Brasil. O maior interesse do autor foi ressaltar a importância daquele gesto para a criação da nação, e não reconstruir a cena tal como aconteceu”, analisa.

A obra começou a ser pintada em 1886 e foi apresentada ao público em 1888, mais de seis décadas depois do episódio do Ipiranga. Segundo o historiador, é preciso analisá--la dentro do contexto em que foi criada. “As obras históricas, na maioria das vezes, falam mais sobre o período de sua feitura do que sobre o momento que buscam retratar. ‘Independência ou Morte’ deve ser pensado a partir do contexto de crise do final do Império Brasileiro e da necessidade de exaltar uma monarquia já decadente, comandada por Dom Pedro II”, disse.

Com dimensões monumentais — 7,60 m de largura por 4,15 m de altura —, a obra foi concebida para causar impacto. “Ela é praticamente um outdoor. Foi feita para impressionar, transpondo para a imagem o discurso do governo imperial sobre a identidade nacional inaugurada em 1822”, acrescenta o historiador.

Liberdade criativa e mensagem política

Pedro Américo tinha consciência das imprecisões históricas, mas assumiu a liberdade criativa em nome de uma mensagem política e simbólica. “Ele sabia, por exemplo, que a montaria de Dom Pedro não era aquela, que o Riacho do Ipiranga não ficava tão próximo da cena e até que o futuro imperador sofria de um incômodo gástrico naquele momento. Ainda assim, escolheu construir uma cena que deixava de fora justamente os detalhes que poderiam comprometer a intenção do quadro”, destaca Morais.

Em um livreto artístico publicado após a conclusão da obra, Pedro Américo escreve que “a realidade inspira, mas não escraviza o pintor”. Nesse texto, ele justifica as escolhas feitas na composição, explicando por que preferiu construir uma cena simbólica e monumental, em vez de se prender aos fatos reais.

Na pintura, Dom Pedro I surge erguendo a espada, cercado por oficiais fardados e cavalos imponentes, às margens do Riacho Ipiranga, em São Paulo. Mas, como ressalta Fabrício Morais, o episódio real foi bem diferente: a comitiva era reduzida e não havia qualquer cenário solene ou militarizado como o retratado na tela.

O próprio artista buscou inspiração em modelos clássicos de batalhas pintadas na Europa. Elementos de obras de artistas como Jacques-Louis David e Horace Vernet aparecem na composição, revelando como Pedro Américo dialogava com a tradição acadêmica ocidental de retratar feitos nacionais como gestos heroicos.

“A tela ‘Independência ou Morte’ acabou se consolidando como a ‘certidão visual da nação’. Ela não deve ser vista como reflexo fiel da realidade, mas como uma construção simbólica que ajudou a moldar a memória coletiva do Brasil, apresentando Dom Pedro I como herói fundador. Ao longo do século 20, essa imagem foi repetida à exaustão — em desfiles cívicos, livros didáticos, histórias em quadrinhos, filmes e até novelas —, fixando-se no imaginário popular como a cena definitiva da Independência”, explica o historiador.

População virou espectadora

Mais de 200 anos depois, a pintura de Pedro Américo continua sendo a principal imagem da Independência no imaginário coletivo, avalia Fabrício Morais. Isso porque “conseguiu captar, em forma visual, um sentimento que Machado de Assis já havia expressado em 1876: o valor simbólico do grito do Ipiranga como síntese da nação. O quadro é impactante, bonito e impressiona quem o vê, mas é preciso também desconstruí-lo, porque ele não comporta a diversidade histórica do Brasil. Na cena principal, Dom Pedro I ocupa todo o protagonismo, enquanto o povo aparece apenas como espectador à margem. Reconheço os méritos da obra, mas defendo que ela deve ser vista como uma representação de época, e não como a verdade histórica do que foi a Independência”, analisa.

A crítica do historiador reforça o debate sobre como a arte molda a memória coletiva de um povo. Ainda que outras pinturas tenham retratado o mesmo episódio, nenhuma alcançou o impacto da obra de Pedro Américo, que permanece como a imagem-síntese da Independência brasileira.

Ecos do movimento em terras paraibanas

A escolha de Pedro Américo para eternizar a cena da Independência não foi casual. Nascido em Areia, na Paraíba, em 1843, ele teve seu talento descoberto ainda na infância, quando dois viajantes europeus se impressionaram com a qualidade de seus desenhos e recomendaram que o governo imperial financiasse seus estudos. Amparado por esse apoio, Pedro Américo formou-se na Academia Imperial de Belas Artes — instituição diretamente ligada ao projeto de construção da identidade visual do Brasil — e aperfeiçoou sua formação na Europa. Reconhecido como pintor histórico, já havia produzido grandes obras encomendadas pelo governo, o que o tornou o nome viável para criar uma representação monumental do episódio da Independência, em um momento em que o Império buscava reafirmar sua própria grandiosidade.

“Pedro Américo sempre esteve muito próximo do governo imperial. Por isso fazia sentido escolhê-lo para criar uma obra grandiosa que exaltasse a Independência e, ao mesmo tempo, reforçasse a memória da importância do Império no Brasil”, destaca Fabrício Morais.

Enquanto a cena era eternizada no Ipiranga, a Paraíba recebia com atraso as notícias da separação de Portugal. Em uma época sem telefone ou internet, a informação viajou por correio marítimo, trazida em embarcações que subiram os rios Paraíba e Sanhauá até o antigo Porto do Varadouro, em João Pessoa.

O historiador Leandro Vilar Oliveira explica que a notícia chegou em 26 de setembro de 1822, embora outras fontes, como Horácio de Almeida, registrem o dia 29 de setembro. “Não sabemos qual navio trouxe a correspondência, nem o horário em que aportou no Varadouro, mas sabemos que, ao desembarcar, a mensagem foi entregue às autoridades locais, passando pela Junta Provisória que governava a província, pelos vereadores da Câmara, juízes e chefes militares”, aponta.

Poucos dias depois, o governo provisório promoveu mais de uma semana de festas na capital para celebrar a Independência, enquanto outras vilas também realizaram comemorações, ainda que em menor escala.

Apoio

O historiador Flávio Ramalho ressalta que  a Paraíba não esperou setembro para se alinhar ao projeto do príncipe regente. “A Paraíba se antecipou em se solidarizar com o então príncipe regente Pedro I. Em 11 de junho, cerca de dois meses antes do 7 de setembro, houve uma grande reunião no Senado da Câmara da Capital — como era chamado na época — que foi a primeira iniciativa da província no sentido de não cumprir as determinações de Portugal. Já em relação à efetiva separação, houve certa demora na chegada da notícia, devido às dificuldades de comunicação da época. Para se ter uma ideia, D. Pedro foi aclamado imperador no dia 12 de outubro, mas a informação só chegou à Paraíba em 27 de novembro e, no dia seguinte, ocorreu uma grande reunião no Senado da Câmara para também aclamar D. Pedro aqui na província”.

Esses relatos mostram que a Independência foi vivida na Paraíba em três tempos distintos: a manifestação de apoio precoce em junho; a chegada da notícia em setembro, marcada por festas; e a aclamação oficial de D. Pedro como imperador em novembro, seguida de celebrações em dezembro.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 7 de setembro de 2025.