O governo Lula está caminhando para o fim do primeiro ano de mandato ainda com desafios, a exemplo de um Congresso arredio. Com o parlamento formado por grande maioria de partidos conservadores, um governo de centro-esquerda tem dificuldades para governar. Segundo a avaliação do cientista político José Artigas, o cenário do Brasil perdeu o espectro autoritário presente nos últimos anos. No entanto, ainda vive um ambiente conflituoso entre os poderes.
“Todos sabemos que o Congresso Nacional, eleito na última eleição, constitui uma legislatura conservadora e o governo é liderado por um partido de centro-esquerda. Por isso acontecem conflitos, isso é natural”, comentou José Artigas.
A falta de aliados atrapalha na governabilidade para o Poder Executivo federal. Segundo explicou o cientista político, o governo tem, no máximo, 120 votos no Congresso Federal, número pequeno e que não garante aprovação das matérias.
Todos sabemos que o Congresso Nacional, eleito no último pleito, constitui uma legislatura conservadora - José Artigas
Para tentar reverter essa situação, o presidente Lula tem buscado a aliança de partidos que não estiveram com ele no período da sua campanha eleitoral, a exemplo do Partido Progressistas, e o União Brasil. “Temos 10 ministérios, uma secretaria e diversas estatais sob comando de partidos que não são aliados de primeiro momento, mas estão em coalizão. É frágil, não podemos falar do velho presidencialismo de coalizão da mesma maneira, hoje a correlação de forças entre Executivo e Legislativo é de outra natureza”.
O presidencialismo de coalizão, citado por Artigas, é uma definição do cientista político Sérgio Abranches, para o modelo onde o presidente da República necessita formar uma ampla coalizão que dê sustentação política ao presidente para governar.
A ideia é que o presidente da República forme seu ministério com integrantes dos partidos da coalizão de governo e, com isso, os partidos ofereçam a maioria de que dispõem no Congresso Nacional para apoiar a agenda do presidente. Apesar das tentativas do Governo Lula, na opinião de José Artigas, essa estratégia ainda não garante uma governabilidade no cenário atual do país.
Além disso, o cientista político pontuou motivos recentes para a falta de governabilidade, a exemplo do poder imposto ao presidente da Câmara. “O presidente da Câmara controla parte expressiva do orçamento do governo o que é de impacto recente, não tinha há 10 anos. Isso permitiu com que o legislativo tivesse um peso muito maior do que tinha no passado. O antigo presidencialismo imperial, que orientava a pauta congressual e fazia um mero chancelador, essa realidade não existe mais. Temos o legislativo com poder que nunca dispôs e em especial o poder do presidente da Câmara que acaba sendo não apenas de agenda mas também de veto, imprimindo imposições para garantir a tramitação dos interesses do governo”, disse.
Brigas entre poderes mostram necessidade de ajustes políticos
Mas o ambiente conflituoso não é apenas entre o Poder Executivo e o Legislativo. Recentemente, após o Supremo Tribunal Federal decidir legislar temas a exemplo do aborto e legalização das drogas, o Congresso tem reagido, incluindo essas pautas.
“O Congresso reage colocando em pauta esses temas para reverter a posição da Suprema Corte, uma forma de incitação de conflito entre poderes, o resultado será a rejeição de algumas proposituras promovendo um embate entre legislativo e Judiciário”.
O conflito entre poderes ainda deve perdurar nos próximos anos de Governo Lula. Na avaliação de Artigas, apesar do país ter vencido o autoritarismo da gestão passada, ainda há riscos na democracia. “Os freios e contrapesos próprios de uma ordem democrática exige que os poderes dialoguem de forma harmônica, mas preservando suas independências particulares. Não é isso que estamos vendo hoje, ou o que veremos num horizonte de curto e médio prazo. Estamos longe de construirmos um padrão razoável de equilíbrio”.
Reforma aprovada na Câmara é principal pauta do Executivo
A reforma tributária que teve o texto aprovado na Câmara e agora está em tramitação no Senado, deve ser a principal pauta do governo. O tema está em discussão desde 2019 e, segundo o relator da reforma na Câmara dos Deputados, o paraibano Aguinaldo Ribeiro, esse é um desafio histórico para o Parlamento, diante dos diversos interesses setoriais, federativos, inclusive com diferenças entre os entes nos três níveis.
Em entrevista à Agência Brasil, ele destacou que o texto aprovado na Câmara, que agora está em tramitação no Senado, representa o interesse do país, depois de serem ouvidas diversas partes envolvidas com o sistema tributário. Ribeiro apontou que a proposta reflete uma tributação harmonizada com o que existe também em outros países para garantir a competitividade do Brasil em relação ao resto do mundo.
Segundo o relator, um dos objetivos é dar transparência ao sistema tributário brasileiro. “A alíquota, se é 29%, 30%, 35%, nós vamos trazer a alíquota verdadeira para o povo saber, porque no Brasil ninguém sabe quanto paga de imposto. Essa é a grande verdade. Se vai ser 30% é porque o povo paga hoje 30%, só que paga escondido de forma cumulativa. Acho que paga até mais porque se for calcular a cumulatividade paga muito mais, porque o nosso regime é cumulativo e deixa resíduo tributário ao longo da cadeia”, disse. “Essa reforma vai trazer também cidadania fiscal, para a gente ter a certeza do que a gente paga”, reforçou.
Na avaliação de José Artigas, a segunda etapa deverá ser encaminhada no primeiro semestre de 2024. Ele explicou que o governo pretende realizar uma mudança estrutural do sistema tributário visando um caráter progressivo “para que os ricos paguem mais e os pobres relativamente menos e isso deve entrar na pauta do ano que vem”, disse.
No entanto, as reformas consideradas pelo especialista como necessárias para o país no momento não devem sequer entrar em discussão nos próximos anos no Congresso, a exemplo de mudanças estruturais, tecnológica, educacional e agrária. “O Brasil precisa de reformas estruturais não para esse governo mas desde o período colonial, inúmeras reformas, mas o parlamento não tem interesse em discuti-las. Estão desconectadas da pauta política nacional”.
Por outro lado, a reforma administrativa, uma pauta de interesse dos partidos da base conservadora, deve voltar a ser discutida. “Ela já tramitou e há um relativo apoio em colocar como fim da estabilidade do servidor e a opção dos governantes de flexibilização da folha de pagamento, por exemplo. Acredito que o governo vai tentar evitar essa pauta, mas isso não significa que não volte ao debate”.
A Proposta de Emenda à Constituição muda regras para os novos servidores públicos; entre as mudanças está a limitação da estabilidade no emprego para algumas carreiras. No regime estatutário em vigor, os servidores são titulares de cargos públicos e somente se distinguem efetivos de comissionados. A PEC prevê diferentes categorias nas unidades em que for adotado o novo regime jurídico de pessoal. A definição de cada grupo será feita por lei complementar.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 04 de novembro de 2023.