A PEC da Blindagem, rejeitada pelo Senado Federal no fim de setembro, acabou sendo derrubada após as grandes manifestações populares realizadas em diversas capitais e cidades brasileiras. As palavras de Ulysses Guimarães, parlamentar que presidiu a Constituinte, materializaram-se mais uma vez: “a única coisa que mete medo em político é a voz rouca das ruas”.
Mesmo com toda a burocracia institucional necessária para o funcionamento da máquina estatal, “a voz rouca das ruas” é agente ativo em diversos momentos decisivos da história política do nosso país.
Para o professor Jonas Duarte, do Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), a história é feita nas ruas, com o povo como protagonista, fundamental nas transformações políticas e sociais. “Para nós, historiadores, as mobilizações populares são uma referência e funcionam como o termômetro das grandes mudanças que ocorreram na humanidade”, pontua o docente.
O historiador destaca que “os grandes processos têm uma relação com as mobilizações populares, muito mais depois da Revolução Francesa, quando o mundo estava vivendo um processo de urbanização”. Ele cita, ainda, a importância da mobilização camponesa nos processos revolucionários ocorridos na China, no Vietnã, na Coréia, em Cuba e na Rússia.
Contudo, Jonas Duarte frisa que as grandes manifestações realizadas pelo mundo não foram exclusivas de grupos ligados à esquerda, lembrando que o “fascismo de Mussolini e o nazismo de Hitler levava milhões de pessoas às ruas”.
No contexto brasileiro, o docente aponta o período pós-1930 como um marco para as grandes mobilizações de rua, iniciado pela Revolução de 1930, que gerou grandes mobilizações pelo país. “As pessoas se levantam, depois que Assis Chateaubriand, inteligentemente, pega o corpo de João Pessoa e sai passeando com ele no Brasil todinho, levantando o povo para, digamos assim, enfurecer os liberais da Aliança Liberal até derrubar o governo e Getúlio marchar para o Palácio do Catete”, explica.
Considerando as grandes mobilizações que alcançaram suas reivindicações no Brasil, o historiador destaca a campanha “O Petróleo é Nosso”, de 1950, que fomentou a criação da Petrobras; a Campanha da Legalidade, de 1961, mobilização que buscou garantir a legalidade e a posse do vice-presidente João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros; a mobilização pelo Sistema Único de Saúde (SUS), de 1986 a 1988, que, por meio de conferências municipais, estaduais e nacional, garantiu a aprovação do SUS na Constituição de 1988; e, por fim, os “Cara-Pintadas”, de 1992, que levaram ao impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello.
“Eu diria que o melhor exemplo de conquista pelo povo na rua é o SUS. O Brasil todo se mobilizou. A gente tinha uma bancada progressista bem ‘mixuruca’. A bancada de direita era enorme naquela Constituinte e, mesmo assim, a gente conseguiu aprovar coisas avançadas com gente na rua”, enfatiza.
Na Paraíba, o docente aponta a Greve dos Canavieiros, ocorrida em 1984, durante o contexto das Diretas Já, que resultou em importantes conquistas trabalhistas fundamentais para regulamentação do trabalho no setor e que, mais tarde, estendeu-se a estados como Pernambuco e Alagoas.
“A greve dos canavieiros impulsionou uma legislação própria para o setor. Eles tiveram conquistas significativas, uma delas foi a quantidade de cana por dia, diminuindo a meta, e um período de folga maior”, ressalta.
Mesmo quando não alcança a solução desejada, a mobilização popular também pode alterar os processos políticos da história do país. É o que defende o historiador e analista político Flávio Lúcio, reforçando que o engajamento dos cidadãos é um pilar fundamental na história do país.
“Por exemplo, a mobilização das Diretas Já não teve o efeito de aprovar a [emenda] Dante de Oliveira imediatamente para 1985, mas liquidou a Ditadura Militar. Veja as mobilizações de 2013: não conseguiram derrubar a presidente Dilma. Inclusive, a própria Dilma foi reeleita, em 2014, mas alterou o quadro político, fez com que novos agentes e dirigentes de uma direita e de uma extrema direita, que não existiam no Brasil, fossem catapultados para o cenário nacional, culminando com o epílogo de Dilma em 2016”, analisa.
Apesar da importância das mobilizações, o analista alerta para os limites da legitimidade das manifestações populares. Para ilustrar, ele cita os atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, apontando que a Constituição garante o direito de protestar, mas não permite ações que tendem para o vandalismo, invasão de patrimônio público ou até mesmo pedidos de golpe de estado e intervenção militar.
“Por exemplo, você não pode fazer uma mobilização que vá pedir uma Ditadura Militar. Como é que você utiliza o espaço e a garantia da lei, que é você ter direito de protestar, e vai protestar contra a democracia? Você vai pedir uma intervenção militar, um golpe de estado? Isso não pode, a lei não permite, porque isso é crime”, crava.
A Constituição Federal garante o direito de protestar no artigo 5o, assegurando que as pessoas possam expressar suas opiniões livremente, desde que a manifestação seja pacífica e sem uso de armas. Além disso, proíbe o anonimato nas manifestações. O artigo 220 reforça essa ideia, afirmando que a liberdade de expressão é garantida, mas quem cometer abusos pode ser responsabilizado legalmente.
Redes sociais
A partir do século 21, a comunicação política passou por mudanças nas estratégias e na hegemonia das mobilizações populares, com a ascensão das redes sociais. Especialmente após os eventos de 2013, essas plataformas alavancaram movimentos de extrema direita. O professor da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e pesquisador dos temas Política e Democracia Darcon Sousa defende que, embora haja o debate sobre a natureza espontânea dos atos, foi introduzido um componente autoritário nas manifestações populares brasileiras, quando “começamos a ver no Brasil uma inflexão e um movimento diferente, um movimento de rua que pede a volta da Ditadura”.
“Até o ano de 2018, isso vai num crescente, as esquerdas políticas vão perdendo esse espaço e o reflexo maior disso é a eleição de Jair Bolsonaro e todos os acontecimentos que se sucedem durante o seu governo, em que há uma combinação de um exercício de poder autoritário, legitimado por um sistema democrático e amparado por movimentos de rua, que, a todo tempo, estão tensionando o tecido institucional, no sentido de que se feche o regime de que se estabeleça um regime mais autoritário, mais excludente”, analisa.
O professor lembra que Bolsonaro era visto como uma “anedota folclórica” e aproveitou-se da utilização e do poderio das redes sociais para mobilizar parte da população. “Na política brasileira, ele se monta nessa estrutura tecnológica intensa, dos bastidores das redes sociais, e aparece, em 2018, como líder de pesquisas eleitorais e, assim, prossegue. Não apenas isso, ele consegue, ainda hoje, mesmo na atual situação, mobilizar amplos setores da opinião pública e da população brasileira e isso se deve muito ao trabalho que eles fazem nas redes sociais”.
Nesse contexto, o docente sinaliza que há pouca divisão entre a mobilização no mundo digital e no mundo real, sendo que os dois campos têm muito peso nas mobilizações populares. “Um alimenta o outro. As ruas, as manifestações populares são o que há de mais substantivo na democracia, mas, por outro lado, há todo um trabalho de formação da consciência, de mobilização, de ativar a sensibilidades que acontece lá onde a comunicação está cega, onde ela está concentrada, que é nas redes sociais”, conclui.
Desafios para sindicatos
Para o presidente da Central Única dos Trabalhadores da Paraíba (CUT-PB), Sebastião dos Santos, as mobilizações populares atuam como um motor de transformações e rupturas sociais no Brasil. Ele destaca que, no atual cenário de “ameaças e ataques às instituições”, a participação popular é fundamental para a defesa da democracia.
No entanto, os principais desafios para essa mobilização estão em torno da “acomodação e adormecimento” das novas gerações e das transformações do mundo do trabalho — como o avanço da inteligência artificial —, que contribuem para um isolamento, dificultando as grandes mobilizações do passado.
“O outro desafio que nós temos é que o movimento sindical, de certa forma, se elitizou, se burocratizou ao longo da sua história. E nós precisamos reinventar, adequar o movimento sindical às transformações do mundo do trabalho. E tudo isso dificulta o processo de luta”, lamenta.
Diante desse cenário, a CUT-PB e outros movimentos sociais estão articulando ações concretas, como uma caravana com destino a Patos, cidade natal do presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta. A manifestação, prevista para o dia 25 de outubro, tem o objetivo de realizar um grande ato contra a reforma administrativa e a anistia aos envolvidos no 8 de janeiro — pautas que a CUT-PB considera um “desrespeito do Congresso com o povo brasileiro”.
Segundo o dirigente sindical, a mobilização envolve os estados de Pernambuco e Rio Grande do Norte, além da própria Paraíba. “Toda ação tem uma reação e acreditamos que nós vamos ter que reagir, porque não dá para continuar esse compromisso do Congresso com o capital financeiro, com o mercado financeiro”, critica.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 12 de Outubro de 2025.