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Popularização de apostas é ameaça

publicado: 21/07/2025 08h54, última modificação: 21/07/2025 08h54
Surgimento de leis que flexibilizam a atuação de cassinos virtuais preocupa setores do Poder Público e da Justiça
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Fortune Tiger, conhecido como “jogo do tigrinho”, é uma das plataformas mais populares no Brasil; país já possui cerca de dois milhões de viciados em apostas on-line | Foto: João Pedrosa

por Paulo Correia*

Objeto de debates acirrados no campo político e na área da Saúde, o mercado de apostas on-line movimenta quantias vultosas no Brasil. Dados divulgados pelo Banco Central (BC) mostram que, neste ano, apostadores destinaram cerca de R$ 30 bilhões por mês às empresas do setor, conhecidas como bets.

A popularização das apostas e a intensificação de anúncios das plataformas contrastam-se com o histórico brasileiro de proibição dos jogos de azar. Em 1944, a Lei das Contravenções Penais coibiu a atividade. Somente em 2018, durante o Governo Michel Temer, o cenário começou a mudar, com a legalização das apostas esportivas, por meio da Lei nº 13.756.

Cinco anos depois, a Lei nº 14.790/2023 regulamentou as apostas de quota fixa, incluindo os jogos on-line na categoria. A norma visa à criação de um ambiente concorrencial, destacando os requisitos para as empresas operadoras; as regras para a publicidade e propaganda; os direitos do apostador; e a definição de como será a tributação e a destinação destes recursos.

O Ministério da Fazenda é o responsável pela fiscalização do setor, mas outras entidades acompanham o cumprimento da legislação, como é o caso da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Em junho, o Conselho Federal da OAB criou a Comissão Especial de Direito dos Jogos Esportivos, Lotéricos e Entretenimento — presidida pelo paraibano Carlos Fábio. O grupo tem como objetivo discutir o setor de jogos e apostas, buscando segurança jurídica e integridade nesse mercado em expansão.

Segundo Carlos Fábio, a comissão atuará no acompanhamento dos projetos de lei em tramitação e em reuniões com relatores e parlamentares, “para contribuir com a proteção da sociedade, especialmente dos mais vulneráveis, com foco na ludopatia [vício em jogos]”.

A atuação da comissão será dividida em cinco eixos: legislativo, regulatório, acadêmico, ético-social e federativo. Diante do crescente número de plataformas de apostas, o jurista sugere a criação de uma agência reguladora que abranja apostas on-line, cassinos e bingos.

Além disso, ele aponta que a falta de uma legislação eficaz representa risco jurídico. “Sou taxativo em afirmar que a relação entre bets e apostadores é uma relação de consumo, devendo ser aplicada a legislação consumerista em proteção do apostador e da sociedade. A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), vinculada ao Ministério da Justiça, diante da preocupante dimensão dos jogos de aposta on-line, elaborou uma nota técnica conjunta com o Instituto de Defesa do Consumidor do Rio de Janeiro (Procon-RJ), dando ênfase e atenção especial à publicidade, que, muitas vezes, promete ganhos fáceis e tem, normalmente, influencers digitais estimulando com falsas promessas”, afirma Carlos Fábio.

Em Campina Grande, a Autarquia de Proteção e Defesa do Consumidor do Estado da Paraíba (Procon-CG) iniciou, neste mês, uma campanha de conscientização e informação sobre o mercado de apostas, semelhante às campanhas antitabagismo.

“Após essa campanha, a gente começou a fazer um trabalho de falar sobre o regramento a que eles [os prestadores dos serviços de apostas] têm que obedecer”, informa o coordenador do Procon-CG, Waldeny Santana.

Ele destaca os riscos envolvidos nas apostas e a importância de buscar ajuda para lidar com os problemas envolvidos. “A gente precisa, primeiro, compreender que o apostador é um consumidor; que aposta não é investimento; que ele pode perder mais do que ganhar. Existe um problema de saúde pública, e os apostadores têm onde buscar ajuda, como na Secretaria Nacional do Consumidor. Nós temos o consumidor.gov.br, o falabr.cgu.gov.br e os Procons municipais, para dar essa assistência e fazer os devidos encaminhamentos”, orienta.

CPI das Bets

Em 2024, o Senado instituiu uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a crescente influência dos jogos virtuais de apostas on-line no orçamento das famílias brasileiras, além da possível associação com organizações criminosas envolvidas em práticas de lavagem de dinheiro, bem como o uso de influenciadores digitais na promoção e divulgação dessas atividades.

A CPI foi encerrada no mês passado e, sob a relatoria da senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), o trabalho envolveu 20 reuniões — sendo 16 com oitivas — e análise de milhares de páginas de documentos, — incluindo quebras de sigilo bancário —, resultando num documento de 541 páginas.

O relatório pediu, por exemplo, o indiciamento de 16 pessoas, entre elas influenciadores digitais como Virginia Fonseca e Deolane Bezerra, além de Fernando Oliveira Lima, fundador do One Internet Group (OIG) — empresa que seria responsável por popularizar, no Brasil, o Fortune Tiger, mais conhecido como “jogo do tigrinho”. O documento também solicitou uma regulação mais rígida das apostas on-line e mais restrições à publicidade das bets.

No entanto, por quatro votos a três, os integrantes da CPI rejeitaram o relatório. A última vez que uma Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado rejeitou um relatório foi há 10 anos.

Conjuntura política favoreceu o mercado

Para o sociólogo Walderlan Silva, professor da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), a liberação dos jogos de azar no Brasil ocorreu por conta do contexto político fragilizado em que o país se encontrava.

“Temer acabou fazendo muitas concessões para se manter no poder e uma delas foi, exatamente, apoiar a liberação dos jogos. Hoje em dia, sete anos depois, o que a gente está vendo são consequências muito negativas desses jogos”, aponta o especialista.

Entre os problemas relacionados aos jogos, há o vício (ludopatia) — reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um transtorno de impulso semelhante à dependência química. Como uma de suas consequências mais comuns, há o endividamento desses dependentes, gerando problemas psicológicos, sociais e econômicos.

Segundo levantamento realizado pelo Departamento de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), em 2024, o Brasil tinha, aproximadamente, dois milhões de viciados em jogos, além de 52 milhões de pessoas que já apostaram em bets ao menos uma vez.

A utilização das plataformas para lavagem de dinheiro é outra preocupação. O professor Walderlan Silva compreende que esse receio tem sido reforçado pelos escândalos envolvendo parcerias com influenciadores digitais. “Figuras conhecidas na internet são pagas para fazer propaganda e criar essa ilusão nas pessoas de que elas vão poder enriquecer, poder ganhar dinheiro”, critica.

Estratégia

O sociólogo cita, ainda, a atuação das bets no patrocínio de festas populares, a exemplo das de Carnaval e de São João, como uma forma de “estreitar os laços com os mais variados segmentos da sociedade — desde a população, que o tempo todo está vendo aquela propaganda, até os políticos, que são aqueles que vão definir políticas públicas para a sociedade brasileira”.

Armadilhas

O professor do curso de Estatística da Universidade Federal de Campina Grande, Alexsandro Cavalcanti, dedica-se a elucidar o universo das apostas. Segundo ele, o lucro das bets está relacionado à Lei dos Grandes Números. Esse princípio estatístico indica que quanto mais uma experiência for repetida, mais ela se aproximará das probabilidades esperadas. Na teoria, portanto, é possível que um apostador ganhe dinheiro no longo prazo. No entanto, contar apenas com a sorte é como entrar em barco fadado a naufragar, uma vez que alcançar um ou outro êxito não garante que haverá consistência nas vitórias.

Esse risco é evidente até nos jogos mais simples, como o de cara ou coroa. Teoricamente, há 50% de chance que o resultado seja cara e 50% de chance que seja coroa. “Mas, se você lançar a moeda 10 vezes, não quer dizer que vai sair exatamente cinco caras e cinco coroas, pode acontecer oito caras e duas coroas ou 10 caras seguidas”, exemplifica Alexsandro Cavalcanti.

Além disso, geralmente, as bets pagam menos do que deveriam por cada vitória do apostador. E retornar menos dinheiro para milhões de apostadores significa embolsar muito dinheiro para as empresas.

“Muitas pessoas não conseguem lidar com o gerenciamento do dinheiro e, quando perdem uma aposta, ficam querendo recuperar logo. Aí é onde se perde tudo”, adverte.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 20 de julho de 2025.