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Referência a Brilhante Ustra abre debate sobre apologia à tortura

publicado: 24/04/2016 00h05, última modificação: 22/04/2016 21h23
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Deputado Jair Bolsonaro gera polêmica ao exaltar torturador da ditadura - Foto: Maryanna Oliveira/Câmara dos Deputados

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Jadson Falcão
- Especial para A União

“Perderam em 64, perderam agora em 2016. Pela família, pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve, contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim.”

O discurso do deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) durante a votação do parecer sobre a admissibilidade do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT) na Câmara dos Deputados, no o último Domingo (17), chocou os defensores dos direitos humanos e os conhecedores da obscura história da ditadura militar no Brasil.

A fala, juntamente com xingamentos homofóbicos ditos por Bolsonaro contra o também deputado federal Jean Wyllys (PSol-RJ), levaram o parlamentar a cometer um ato extremo durante a sessão tumultada do domingo: Jean Wyllys cuspiu no colega da Câmara.

O ato repercutiu em meio ao momento de crise política e de intolerância que o Brasil enfrenta.

Jean Wyllys revidou com um cuspe os xingamentos de Jair BolsonaroEm seu perfil no Facebook, o deputado do PSol afirmou que, além de ofendê-lo com palavras homofóbicas como “veado”, “queima-rosca” e “boiola”, Jair Bolsonaro também tentou agarrar seu braço “violentamente” no momento de sua saída. Ele citou ainda como motivo, o fato de que Bolsonaro “dedicou” seu voto a favor do impeachment ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) - principal orgão de repressão da ditadura militar -, e que é apontado por dezenas de familiares de vítimas do regime militar e perseguidos políticos como responsável por perseguições, torturas e mortes de opositores do Golpe de 1964.

Em entrevista ao EXTRA, Jair Bolsonaro negou as acusações de Wyllys e defendeu o discurso no qual citou Brilhante Ustra. Para ele, o coronel não foi um torturador, mas sim um combatente da guerrilha no Brasil, tendo lutado contra grupos revolcionários, que, segundo ele, mataram muitas pessoas.

Quanto à irritação do colega, Bolsonaro afirmou ao UOL que acredita ter sido motivada pelas homenagens feitas por ele no discurso. “O meu encaminhamento [voto] ele não gostou obviamente porque eu peguei pesado. Perderam em 1964 e em 2016, parabéns ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que era o pavor de Dilma Rousseff. Me encaminhei pelas Forças Armadas, pela democracia, em defesa da família e das crianças nas escolas. Talvez seja isso, né? Ele queria aprovar o kit gay aqui, perverter nossas crianças em sala de aula. Talvez seja isso que tenha tornado ele um tanto quanto agressivo. Baixou o nível.”, disse o deputado.

Jair Bolsonaro é deputado federal há 25 anos, mas é conhecido em todo o país por suas declarações polêmicas a respeito dos homossexuais, dos direitos da mulher e dos negros. Defensor da ditadura militar, ele é contra as bandeiras levantadas pelo movimento LGBT e combateu fortemente o plano do MEC de incluir o combate à homofobia nos currículos escolares em 2011. No ano de 2008, declarou no plenário à então ministra de Direitos Humanos, Maria do Rosário (PT-RS), que jamais a estupraria, pois, segundo ele, “ela não merecia”.

Durante pronunciamento na Assembleia Legislativa da Paraíba na última semana, a deputada estadual Estela Bezerra (PSB) também se posicionou contra o discurso de Bolsonaro. Ela lembrou que uma das práticas do coronel Ustra era a de decepar dedos, mãos e destruir a arcada dentária de pessoas que se declaravam contra a ditadura. Até crianças eram torturadas por ele na frente dos pais para que se obtivesse a informação.

“Muitas mulheres foram estupradas com requintes de perversão. O coronel colocava baratas e ratos na vagina das mulheres, o que mostra que ele era o terror”. [...] É um absurdo a gente assistir passivamente a uma exaltação dessa. Por isso quis marcar e registrar esse episódio nessa Casa para que esse parlamento fique alerta, porque quem representa o povo não pode fazer outra defesa a não ser a defesa da integridade e da paz verdadeira em nossa sociedade”, afirmou a deputada.

A parlamentar destacou que concorda com o posicionamento da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Rio de Janeiro, que anunciou que irá pedir a cassação do mandato do deputado ao Supremo Tribunal Federal (STF) e solicitar medidas à Corte Interamericana de Direitos Humanos, na Costa Rica.

Para Estela, deve haver um levante por parte dos meios de comunicação com relação ao deputado Bolsonaro, porque é muito perigoso o fato de um cidadão começar a transformar em herói, uma personalidade tão perversa da história do país.

“Nós estamos vivendo um momento em que o sentimento de ódio, o pensamento fascista que gerou a Segunda Guerra Mundial, que gerou em toda a Europa a caça aos judeus, está sendo implantado no nosso país. Esse ódio está sendo incitado contra as mulheres, contra os negros e contra os homossexuais, e o deputado que fez a defesa, e que fez alusão ao coronel Brilhante Ustra, faz a defesa de condenar e torturar todos esses segmentos sociais”, completou a parlamentar.

Postura fascista e perigosa

Para José Artigas, Bolsonaro deveria estar preso por crime de intolerância Para o cientista político José Artigas, o discurso de Bolsonaro é uma demonstração de que não existem mais espaços de mediação democrática junto ao parlamento brasileiro. Ele enfatizou que a fala de Jair Bolsonaro é absolutamente inaceitável. Artigas destacou que nada justifica o cuspe do deputado Jean Wyllys, mas afirmou que a atitude é compreensível, pois quando a intolerância se espalha entre os homens, especialmente no interior das instituições, não há outra reação esperável, senão a violência.

“A violência se inaugurou com a fala fascista de Jair Bolsonaro. Inaceitável, criminosa. Aquele senhor deveria estar preso por crime de intolerância, por estimular a negação da democracia, o que na constituição está previsto. Ninguém pode atentar contra a democracia”, enfatizou o estudioso.

Artigas destacou ainda que a fala do deputado Bolsonaro rompe todos os pressupostos fundamentais dos direitos humanos. Para ele, o que o parlamentar afirmou em seu voto é um atentado contra as instituições, a Justiça, e a tolerância. “É uma forma, a mais cruel possível, de afirmar o fascismo, característico daquela pessoa”.

Quanto ao cuspe, José Artigas explicou que não acha que tenha sido a melhor atitude, mas que, para ele, é totalmente compreensível numa cirscuntância em que há uma franca deslegitimação da democracia, que é base fundamental da organização política e institucional.

“Quando o parlamento é espaço de fascismo, desaparece a política. No momento em que não há mais política, não há mais moderação nem possibilidade de expressar-se num ambiente de tolerância, resta apenas a violência e o desrespeito. [O cuspe] foi uma reação a uma colocação absolutamente inaceitável, o lugar de Jair Bolsonaro é na cadeia. Quando o diálogo abre espaço para a exaltação da violência, da tortura, aí certamente, toda forma de reação à opressão e intolerância é legítima. Nesse aspecto então nós temos um excesso promovido pelo Jean Wyllys, mas um excesso justificável e legítimo. É compreensível a atitudde de Wyllys, e não compreensível a atitude de Jair Bolsonaro, e é isso que diferencia os excessos de cada qual deles”, completou Artigas.

A presidente Dilma Rousseff também se manifestou a respeito da fala do deputado durante entrevista coletiva na terça-feira (19). “Eu, de fato, fui presa nos anos 70. De fato, eu conheci bem esse senhor ao que ele se referiu. Foi um dos maiores torturadores do Brasil. Contra ele recai não só a acusação de tortura, mas também de mortes, é só ler os documentos da Comissão da Verdade. Lastimo que, nesse momento, o Brasil tenha dado espaço para esse tipo de ódio, situação de raiva, de perseguição. E, veja você, em um processo como o nosso em que a democracia resulta de uma grande luta. É terrível você ver no julgamento alguém defendendo esse torturador. É lamentável”, afirmou Rousseff.

O Partido Social Cristão (PSC) de Jair Bolsonaro afirmou que vai entrar, até esta semana, com uma representação no Conselho de Ética da Câmara contra Jean Wyllys, e que espera alguma “reprimenda” por considerar que o parlamentar não teve comportamento adequado no plenário. Funcionários do partido explicaram ainda à Agência Brasil que, apesar de a legenda ser democrática e costumar conceder aos deputados muita liberdade de expressão, ela não necessariamente endossa suas opiniões. 47 instituições da Paraíba manifestaram, em nota, seu apoio ao mandato do deputado Jean Wyllys, que, segundo ressaltaram, tem atuado de forma exemplar na defesa dos Direitos Humanos, na ampliação e garantia de direitos da população negra, quilombola, da juventude, povos de religiões de matrizes africanas, movimentos de mulheres e LGBT.

Exímio torturador

Apesar de a tortura ser crime imprescritível, Ustra morreu sem ter sido julgadoO coronel Brilhante Ustra chefiou o DOI-Codi, sediado em São Paulo, de 29 de setembro de 1970 a 23 de janeiro de 1974. Durante o tempo em que Ustra chefiou o orgão militar, foram registrados no local ao menos 50 assassinatos e 502 torturas, de acordo com relatório elaborado pela Comissão Nacional da Verdade, que apurou casos de sumiço de presos políticos e de tortura durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985).

Em 2013, Ustra foi apontado pela Comissão da Verdade como um dos 377 agentes do Estado responsáveis pela prática de torturas e assassinatos na ditadura militar do Brasil. Apesar disso, negava intensamente ter cometido atos de violência contra os presos políticos, e afirmava que tinha cometido apenas alguns “excessos”.

O militar recebeu seis denúncias do Ministério Público Federal (MPF) por crimes cometidos durante a ditadura, sendo a última em 2015, pela morte do militante comunista Carlos Nicolau Danielli, sequestrado e torturado nas dependências do DOI-Codi durante o tempo em que Ustra chefiava o orgão.

Por conta da “Lei da Anistia”, publicada em 1979, que deu tanto a agentes do Estado, quanto a cidadãos que se rebelaram contra o regime militar o perdão de seus atos. A condenação do coronel por seus atos de tortura, porém, nunca ocorreu.

Carlos Alberto Ustra Brilhante faleceu em outubro de 2015. Ele se tratava de um câncer, mas foi ao óbito por conta de uma falência múltipla dos órgãos, ocasionada por uma pneumonia.