Caminhar por lugares de João Pessoa, como a Rua das Trincheiras e a Avenida João Machado, remete a um passeio pela história da urbanização da cidade no século 20. Contadas por meio das paredes, jardins e portões dos casarões antigos, que povoam a memória afetiva da população, essas narrativas lutam para resistir ao tempo. E, apesar de muitos imóveis estarem em mau estado de conservação, há casos que caminham na direção contrária, com edificações preservadas. Uma parte delas segue utilizada, seja como residências, seja como empreendimentos comerciais.
Um exemplo desses casarões é o “Castelinho de Jaguaribe”, localizado na Praça Bela Vista, em Jaguaribe. A edificação de dois andares tem uma torre frontal, sustentada por colunas gregas em estilo coríntio, além de salas e quartos com janelas de madeira e vitrais coloridos. Tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (Iphaep) desde 1980, a casa foi construída, inicialmente, para ser a residência do advogado João da Mata Correia Lima, entre as décadas de 1920 e 1930. Segundo registros divulgados em blogs de jornalistas, João da Mata era amigo de João Dantas, autor do assassinato do ex-governador da capital paraibana, João Pessoa, em 1930.
As histórias sobre a época da construção são recontadas pelos moradores mais antigos, como José Araújo, de 57 anos, que vive no bairro desde a infância. “Minha avó contava que João da Mata ia casar e construiu esse castelo para morar com a noiva. Só que ele teve um sonho de que ia para Recife e morria no acidente, mas ele não acreditava. E aí ele acabou morrendo em um acidente”, afirma. Após o falecimento do proprietário original, a casa chegou a abrigar outros moradores. Na vizinhança, relata-se, inclusive, que o cantor Benito di Paula residiu no “Castelinho”. Lá, também já funcionaram empreendimentos diversos, desde um salão de festas a um escritório de apostas de futebol.
O casarão da Praça Bela Vista é símbolo de um período de expansão urbana em João Pessoa. Nas primeiras décadas do século 20, as elites econômicas da cidade deixaram o centro e decidiram ocupar terrenos menos valorizados, como as Trincheiras, a orla e a Zona Sul. O guia de turismo e especialista em gestão pública voltada à preservação patrimonial, Helton Medeiros, conta que os novos imóveis passaram a ser conhecidos como casarões ou castelinhos de açúcar, devido à ligação das famílias proprietárias com o plantio e o beneficiamento da cana-de-açúcar.
Ele também explica que, com a mudança de endereço, houve uma transformação no estilo das construções. No Centro Histórico de João Pessoa, antigo domicílio desses moradores, os casarões de fachada eram geminados, refletindo uma prática comum no período colonial. As novas residências, contudo, seguiram outras tendências, como o movimento artístico conhecido por ecletismo.
“O ecletismo é um dos principais estilos arquitetônicos que vigora durante as primeiras décadas do século 20 e, entre outras, ele tem influência do estilo neorromânico, que faz uma referência aos castelos europeus. Assim, essas casas do início do período republicano se caracterizam por uma arquitetura mais aburguesada, com a grande grade na frente, o casarão no centro do terreno, cercado por área desocupada verde de todos os lados, com jardim, quintal, grandes becos laterais, e esse formato arquitetônico que nos remete ao castelo”, esclarece Helton Medeiros.
Outro imóvel marcante que segue preservado é a casa branca, na Avenida Epitácio Pessoa, onde funciona um escritório de advocacia. Construído em estilo neoclássico, o casarão pertencia à família Ribeiro Coutinho, uma das mais ricas de João Pessoa no século passado. O empreendimento conservou as características arquitetônicas do local e abriga, atualmente, a Exposição Ariano Suassuna, que conta a história do poeta e dramaturgo paraibano, com itens como a máquina na qual ele escreveu a peça “O Auto da Compadecida”. A exposição é aberta ao público um sábado por mês, das 14h às 18h, e pode ser visitada no próximo dia 18 de maio. A entrada é gratuita, mas é necessário, antes, reservar o ingresso on-line.
Imagem instiga curiosidade da população
A referência às construções medievais, presente nos casarões “de açúcar”, pode ser percebida em outro local notável no imaginário pessoense: o “Castelinho do Miramar”. Situada na esquina das ruas Coronel Souza Lemos e Manoel Gualberto, a casa foi construída na década de 1960, assumindo o estilo de um castelo após reforma, em 1983. Seus atuais proprietários são um casal de idosos: João Pereira, de 89 anos, e Matildes Brasileiro, de 83 anos. Por conta da idade avançada, eles não moram mais no imóvel, e a família optou por alugá-lo para um novo projeto, ainda em desenvolvimento, que deverá preservar suas principais características arquitetônicas.
O estilo do casarão, aliás, foi o que motivou o casal, antes residente em Campina Grande, a mudar-se para o novo endereço em 1993. É o que relata uma de suas netas, a gestora de projetos Bianca Brasileiro. “A casa chamou a atenção do meu avô, porque era uma construção moderna, com muitos cômodos, a fachada de pedra, o formato de castelo, os lustres grandes, os pisos de taco, a cerâmica com os arabescos e os cobogós. E como meus avós têm cinco filhos, meu avô já vislumbrava que todo mundo fosse para lá no futuro, quando os filhos tivessem netos”, explica.
A projeção de seu João Pereira se concretizou e as lembranças de sua família, com mais de 20 integrantes, entre filhos, netos e bisnetos, foram moldadas pelas festividades celebradas nos cômodos de sua casa. Bianca considera gratificante o fato de algumas de suas melhores recordações compartilharem a mesma referência que marca a memória afetiva de tantos pessoenses. “Eu lembro que várias vezes, na infância, quando eu estava passando férias na casa dos meus avós, era frequente ver pessoas passando na frente da casa e tirando foto, questionando quem morava ali, e até crianças que, no imaginário delas, falavam que era um castelo. A gente se sente muito privilegiado, porque aquela casa icônica, que tantas pessoas também têm admiração, é também a casa que foi palco de tanta coisa massa que aconteceu na nossa família”, celebra Bianca.
Capital tem 65 decretos de tombamentos
Em João Pessoa, estão em vigor 65 decretos de tombamentos de imóveis, sob responsabilidade do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (Iphaep). Os dados são fruto de um levantamento feito pela coordenadora de Arquitetura e Ecologia do Instituto, Katharina Ayres de Moura, e pelo arquiteto analista, Artur Medeiros Veiga Rodrigues. Somente na Rua das Trincheiras e na Avenida João da Mata estão localizadas 13 edificações tombadas, enquanto, na Avenida João Machado está a própria sede do Iphaep, que integra a lista.
Além das construções ligadas ao período inicial do século 20, a exemplo do “Castelinho de Jaguaribe”, há outras regiões da cidade protegidas por decretos estaduais, como o Centro Histórico, que engloba mais de sete mil imóveis, em uma área de aproximadamente 400 hectares.
Para Katharina Ayres de Moura, um dos maiores desafios na preservação desses espaços é a falta de uso de parte dos imóveis, que leva ao esvaziamento. Ela também acredita que a educação patrimonial é uma importante ferramenta para combater esse cenário. “O Iphaep realiza palestras em diversos setores, como escolas, faculdades e diferentes categorias profissionais, como comerciantes, engenheiros e corretores imobiliários. Também realiza parcerias com faculdades de João Pessoa para desenvolvimento de pesquisas realizadas ao Centro Histórico e mantém um grupo de pesquisa contínua sobre a história da Paraíba, para reconhecimento e valorização da nossa cultura”, declara a coordenadora de Arquitetura e Ecologia do Iphaep.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 21 de abril de 2024.