No aniversário de 55 anos da Ditadura Militar, A União conta como os traumas da época se perpetuam entre as gerações
por Phelipe Caldas
Rio de Janeiro, 31 de março de 1964. Paraibano de Itabaiana, Abelardo Jurema acordou bem cedo naquele dia, deixou a sua casa na Rua Cesário Alvim, 27, e se dirigiu para a Rádio Mayrink Veiga. Anos antes, aquela emissora tinha liderado com sucesso a chamada Cadeia da Legalidade, uma rede nacional de rádios organizada por Leonel Brizola com o objetivo principal de defender a posse de João Goulart, em 1961, depois da renúncia de Jânio Quadros.
Três anos depois, o país estava mais uma vez sob a ameaça de um golpe militar, e Abelardo, na condição de ministro da Justiça de Jango, foi à emissora para defender a legalidade de um governo eleito pelo povo. Ele ficara no Rio a pedido do próprio presidente. E na emissora de rádio falava com paixão, usava sua boa oratória na luta pela manutenção da democracia. Apresentava-se na linha de frente de uma resistência em prol da Constituição Federal em vigor.
Falou até mais ou menos o meio da tarde daquele dia, quando sua voz foi silenciada repentinamente. A rádio foi tirada do ar pelos militares, que iniciavam naquele momento o golpe que acabaria sendo bem-sucedido, que colocaria o Brasil num período de 21 anos de violência, prisões e torturas, e que neste ano de 2019 completa 55 anos. Abelardo Jurema, a propósito, ficou sabendo naquele meio de tarde que o golpe estava em curso. E, mais do que isso, que o presidente já se encontrava na fronteira com o Uruguai, para onde se exilaria. Percebendo que a deposição do presidente era uma realidade, e consciente de que naquele momento perdia o seu cargo de ministro, decidiu ir até o aeroporto do Rio com o objetivo de viajar para Brasília. Detentor de mandato como deputado federal pela Paraíba, tinha como meta voltar à capital e reassumir a sua cadeira na Câmara dos Deputados.
No aeroporto, contudo, acabaria detido por homens do 2º Exército e de lá levado para o Forte de Copacabana. Foi interrogado, mas pouco depois acabaria liberado pelo general Jurandir Bizarria Mamede (reza a lenda que depois o general sofreria uma reprimenda do novo presidente, Castelo Branco, por ter deixado o ministro da Justiça do governo deposto escapar). Abelardo, então, se escondeu na casa de amigos e três dias depois, já cassado, se asilava na Embaixada do Peru. No mesmo dia de sua chegada à embaixada, a propósito, a polícia do governador do Rio, Carlos Lacerda, colaborador do golpe, chegava à casa de Abelardo na Cesário Alvim com o objetivo de prendê-lo.
Dispararam rajadas de metralhadora para o alto, invadiram a casa, destruíram muitos dos móveis, mas obviamente não o encontraram por lá. Em dado momento, procuraram pelo ministro debaixo da cama. A esposa dele, Maria Evanise, não se segurou. Ironizou:
- Onde já se viu? É um absurdo procurar um paraibano debaixo da cama.
O ex-ministro viajaria para o Peru depois de dois meses asilado na embaixada, e no país permaneceria como exilado político por longos cinco anos. Proibido de retornar à própria pátria, sob o risco de ser preso à revelia da justiça.
As cenas descritas nesta reportagem, a propósito, foram narradas por uma das filhas de Abelardo, a servidora pública aposentada Nara Jurema, que à época dos fatos tinha 17 anos. Ela relembra, entristecida: "Trataram meu pai como um bandido. Como um ladrão. Mas tudo o que ele tinha feito foi defender a democracia", declara ela. Quem também rememora esses episódios é o irmão de Nara, o jornalista Abelardo Jurema Filho, que chegou a escrever um livro sobre esse período. Ele tinha 12 anos à época, recorda muito fortemente da invasão à sua casa no dia do golpe e lembra que no dia seguinte o muro de sua casa amanheceu pichada com insultos e com a inscrição comunista".
"Foi um período muito traumático. Nossa casa sempre foi ponto de convergência para os amigos, e de repente éramos tidos como comunistas, como pessoas proscritas. No colégio, eu era tratado como o "filho do ministro" pelo diretor do colégio. E, de repente, passei a ser mal-tratado pelos colegas e pelo mesmo diretor", recorda.
No fim das contas, o ministro Abelardo Jurema foi um dos primeiros paraibanos a sofrer as consequências do golpe. Não seria o único.
Segundo o relatório final da Comissão Estadual da Verdade e da Preservação da Memória do Estado da Paraíba, publicado em 2017 com o objetivo de esclarecer os crimes contra a humanidade cometidos naquele período pelos militares, 125 paraibanos foram torturados durante os 21 anos de Ditadura Militar (a maioria deles entre as décadas de 1960 e 1970) e nove constam na lista oficial de mortos e desaparecidos. Os números de paraibanos mortos ou desaparecidos pelo regime, contudo, podem ser muito maior. Pelo menos outros 14 podem ter sido executados pelo Estado de Exceção e o motivo da causa da morte ter sido propositalmente adulterado. Na maioria desses casos, a causa oficial da morte consta como "suicídio".
Algumas das vítimas paraibanas tinham ligação com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) ou com o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), é fato, mas a versão de que só "comunistas que pegaram em armas" foram perseguidos pelos militares é desmentida pela Comissão da Verdade. Na realidade, qualquer pessoa vagamente acusada de cometer "condutas subversivas" poderia entrar na mira dos militares e sofrerem as consequências.
É o caso de Rômulo Araújo Lima. Estudante de Direito de apenas 19 anos à época, ele foi preso em 1969 em frente ao Teatro Municipal Severino Cabral, em Campina Grande, acusado de estar envolvido na luta armada, algo que não era verdade. Rômulo tinha sido filiado ao PCB, mas sempre atuou como um defensor das liberdades, da democracia, da legalidade. Afastaria-se do movimento estudantil justamente quando alguns amigos resolveram migrar para a luta armada, mas já era tarde. Já estava na mira dos militares. Rômulo foi levado inicialmente para a sede da Polícia Federal em Campina Grande e de lá para o Comando da Polícia Militar, em João Pessoa. No mesmo dia, foi enviado de avião para o Rio de Janeiro, sem que a família soubesse de seu paradeiro. O campinense foi torturado primeiro no quinto andar do prédio do Ministério da Marinha. Levado para a Ilha das Flores, continuaria a ser torturado pelos quinze dias seguintes.
Provavelmente, só não morreu por que seu tio era maçom. Conseguiu localizar o sobrinho e interviu com outros maçons influentes em prol de sua liberdade.
Negar a Ditadura Militar é um desrespeito às vítimas
Os sofrimentos gerados pela Ditadura Militar não se limitaram às vítimas do Golpe de 64. E quem diz isso é Gustavo Guimarães Lima, filho de Rômulo Araújo Lima. Gustavo é advogado, poeta e militante dos direitos humanos. Só nasceria em 1981, doze anos depois da prisão e tortura de seu pai, mas o filho cresceria convivendo com os traumas do passado. "Várias vezes eu vi meu pai acordando de madrugada, aos gritos, achando que estava apanhando. Os rescaldos da Ditadura Militar sempre foram presentes em minha vida", destaca.
Ele admite que o pai tinha uma linha ideológica de esquerda, como defensor da reforma agrária, de uma melhor distribuição de renda, de mais liberdades para o povo brasileiro, mas que nunca defendeu a violência ou qualquer tipo de ação armada. Mas, ainda assim, foi visto como subversivo e como uma ameaça ao Governo Militar. O filho de Rômulo destaca ainda que as torturas sofridas pelo eu pai eram as mais variadas possíveis, incluindo pau-de-arara, choque nos testículos, surras, ameaças e torturas psicológicas tais como mandá-lo cavar a própria cova.
Um passado doloroso que nunca abandonou o seu pai. "Foi uma nódoa muito forte na vida dele. Ele nunca conseguiu se livrar daquilo", lamenta.No relatório da Comissão da Verdade, inclusive, consta que ele sofreu ao longo da vida distúrbios mentais graves em consequência das torturas sofridas no Rio de Janeiro. O filho, inclusive, que está em processo de produção de um livro para contar os dramas vividos pelo pai (que morreu em 2015), conta uma história das mais desesperadoras: "Meu pai tentou se matar quando soube da morte de Tancredo Neves por puro pavor os militares retomarem o poder", relembra.
Por tudo isso, ele se diz irritado quando escuta do presidente Jair Bolsonaro e de outras pessoas a tentativa de reescrever a história. "Quando alguém diz que não houve golpe no Brasil, eles desrespeitam as vítimas. Deturpam a história. Brincam com a memória do meu pai, que sempre lutou pacificamente em defesa de princípios democráticos", opina. Ainda de acordo com Gustavo, tanto ele como seus irmãos conheceram os efeitos da tortura sem nunca terem sido torturados de fato. E tudo isso porque eles cresceram percebendo como aquilo tudo doía em Rômulo. "Meu pai só teve condições de conversar com a gente sobre as sessões de tortura que sofreu em cinco oportunidades apenas. E em odas elas, teve ânsia de vômito".
Por fim, ele arremata: "Eu fico muito triste com o atual momento do país. As pessoas que lutaram pela democracia, pelo nosso direito de votar, são tratados por muitos como marginais, e não como heróis".