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ELEIÇÕES

Voto facultativo, porém necessário

publicado: 23/06/2024 09h02, última modificação: 25/06/2024 09h35
Participação política de adolescentes, idosos com mais de 70 anos e analfabetos é benéfica para a democracia

por Filipe Cabral*

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Ilustração: Matheus Antonius

Carla Thays tem 17 anos, é estudante da rede estadual de ensino da Paraíba e vai votar pela primeira vez nas Eleições Municipais 2024. Prestes a completar 85 anos, a técnica de laboratório aposentada, Lizete Melo, já perdeu a conta de quantas vezes exerceu o direito. Apesar da diferença de idade, neste ano, as duas fazem parte de um mesmo grupo: o de eleitoras e eleitores para quem o voto não é obrigatório.

De acordo com a Constituição Federal, o voto e o alistamento eleitoral são obrigatórios para os brasileiros maiores de 18 anos e facultativo para maiores de 70 anos, jovens com idade entre 16 e 18 anos e analfabetos.

Na Paraíba, segundo dados da Justiça Eleitoral, dos mais de 3,2 milhões de eleitores aptos a votar neste ano, cerca de 522 mil (16%) poderão escolher se participam ou não das eleições municipais. Na soma, estão os 80.053 eleitores de até 17 anos, os 300.067 maiores de 70 e os 142.087 analfabetos entre 18 e 70 anos. O número é maior que o total de eleitores de praticamente todos os municípios do estado, exceto a capital João Pessoa, cujo eleitorado, em 2024, é de 567.403.

Ao comparar com os pleitos anteriores, é possível observar que o grupo dos eleitores para quem o voto é facultativo tem aumentado, de modo geral, nos últimos anos. Nas eleições municipais de 2020, por exemplo, os adolescentes com até 17 anos somavam 42.322, enquanto os idosos com mais de 70 eram 246.274. Dois anos depois, nas eleições gerais de 2022, ambos grupos cresceram, com totais de 57.814 e 273.475, respectivamente.

Apenas o grupo dos analfabetos apresentou redução com o passar dos anos. Em 2020, o total de analfabetos — de todas as faixas etárias — aptos a votar na Paraíba era de 216.698, representando 7,3% do eleitorado estadual à época. Em 2022, o número caiu para 211.163 (6,83%) e, neste ano, para 208.324 (6,45%). De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, a Paraíba tinha 417 mil analfabetos, o que correspondia a pouco mais de 10% dos 4,05 milhões paraibanos computados naquele ano.

Participação

Ao analisar a importância do voto facultativo nas Eleições Municipais 2024, o sociólogo e professor de História Contemporânea da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Flávio Lúcio Rodrigues, observa que a participação dos eleitores para quem o voto é opcional pode ser decisiva em determinados cenários. Como exemplo, ele recorda as eleições gerais de 2022, que, segundo ele, poderiam ter sido definidas ainda no primeiro turno caso a taxa de abstenção não tivesse sido tão alta. Na ocasião, mais de 32 milhões de eleitores aptos a votar não compareceram às seções eleitorais, o que representou quase 21% de abstenção.

“Eu lembro que Lula deixou de vencer por algo em torno de 1,8 milhão de votos. Se parte do eleitorado que se absteve tivesse votado, nós poderíamos ter tido outro resultado. A gente sabe que a abstenção não é só desses grupos [de voto facultativo], mas como eles não têm uma penalidade caso deixem de votar, a tendência é que, entre eles, haja uma abstenção maior”, comentou.

Nesse contexto, Flávio Lúcio defende a realização de campanhas, como as produzidas pela Justiça Eleitoral, de incentivo ao exercício do voto.

“Quando um eleitor não vota, outra pessoa que vota acaba decidindo por ele. E esse é o problema que faz com que, muitas vezes, um eleitor lamente quando um candidato ou candidata que venceu a eleição produz uma tragédia política ou encaminha o governo em uma direção desfavorável à sociedade”, sublinhou o sociólogo.

Consciente de sua responsabilidade com a democracia, Carla Thays dos Anjos é uma das jovens eleitoras paraibanas que fazem questão de participar da escolha de prefeitos e vereadores neste ano.

“Os jovens fazem total diferença [nas eleições]. Porque a gente também tem voz, a gente também faz diferença, a gente participa da sociedade. Então, se a gente é atingido pelas escolhas que são feitas, a gente tem que fazer parte de todos esses processos e eleger quem mais nos represente”, defendeu a estudante da Escola Cidadã Integral Técnica (Ecit) Olivina Olívia Carneiro da Cunha.

Na outra ponta do grupo, do alto de seus 84 anos, Lizete Melo garante que, em outubro, comparecerá mais uma vez à seção eleitoral na UFPB para “depositar” seu voto. Questionada se, depois de tantos anos, já estaria cansada ou desencantada com a política, ela rebate: “Estou firme e forte!”.

“O idoso deve escolher seu candidato. Aqui não tem ninguém que mexa com a minha cabeça, não. Sou eu quem resolvo, tá entendendo? Primeiro eu procuro o que foi que aquele candidato fez, se a criatura já teve mandato, se ele fez algo de bom para o idoso, na educação, na saúde, vou levantando a ficha dele”, explicou a aposentada.

Para Lizete, mais do que a opção por um ou outro candidato, o exercício do voto pelos idosos representa a afirmação de um direito e até mesmo da vida.

“Às vezes, as famílias acham que o idoso só deve ficar dentro de casa, não pode sair, estar na rua, fazer atividades. Não, de jeito nenhum. Não é porque nós somos idosos que nós deixamos de ser pessoas ativas na sociedade. Os idosos precisam ser mais valorizados e ter seus direitos respeitados”, protestou.

Grupos protagonizam conflito de gerações e de ideais políticos

Em relação aos perfis dos grupos para quem o voto é facultativo, Flávio Lúcio comenta que, embora não possam ser vistos como “blocos monolíticos”, é possível identificar algumas características preponderantes em cada segmento.

Ao analisar as votações dos últimos pleitos municipais e gerais, o sociólogo observa que adolescentes e idosos, por exemplo, “têm assumido posições políticas mais distintas”. Segundo ele, o eleitor mais velho é “majoritariamente mais aberto ao conservadorismo”, enquanto os mais jovens costumam ser “mais resistentes às pautas mais conservadoras”.

“As pesquisas mostram isso. O eleitor mais jovem é mais preocupado e está mais aberto ao enfrentamento contra o que ele encara como retrocesso. Ao passo que o eleitor mais idoso, até pela idade, é um eleitor que, de maneira geral, se engaja mais nas pautas mais conservadoras”, pontuou.

 Analfabetos

Sobre os analfabetos, o professor da UFPB questiona a tese de que tais eleitores seriam apenas “massa de manobra” ou de que “não sabem votar”. Ele, inclusive, destaca o direito dos analfabetos ao voto como uma conquista consolidada na Constituição de 1988.

Até 1985, quando foi promulgada a Emenda Constitucional no 25 à Constituição de 1967, os analfabetos não tinham o direito de votar, vivendo à margem da democracia no país. O voto dos iletrados chegou a existir durante o período colonial e o Império, mas foi abolido em 1881, passando 104 anos até ser restabelecido.

“O preconceito contra os analfabetos — de que eles seriam apenas ´massa de manobra´ — é um preconceito de classe também, porque, em geral, os analfabetos pertencem àquela faixa da população mais pobre. Essa crítica normalmente embute um preconceito dos mais ricos em relação a esses mais pobres. E esse preconceito é potencializado ainda pela cultura escravista da nossa elite, que vê no povo mais pobre uma massa que deve servir para para segui-los politicamente e ser explorada economicamente”, apontou Flávio Lúcio.

“O pessoal que reclama do voto do analfabeto, é o mesmo que diz que o Bolsa Família ´criou uma legião de vagabundos´. Mas o que acontece é que o pessoal que recebe Bolsa Família apenas não aceita mais trabalhar recebendo o que eles querem pagar. Porque agora eles têm uma renda mínima que lhes permite recusar essas ofertas de trabalho ultraexploratórias”, acrescentou.

Ainda sobre a ideia de que os analfabetos não teriam percepção da política ou não teriam condições para decidir como votar, o sociólogo provoca: “Basta olhar a classe média como vota também. Você vai ver que isso não tem nada a ver com ensino formal. Às vezes, um analfabeto é muito mais consciente porque ele sabe como ele vive, o que ele sofre e do que ele precisa”, argumentou.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 23 de junho de 2024.