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Hitler sorri no inferno

publicado: 12/06/2018 05h49, última modificação: 12/06/2018 05h49


Agatha Justino

Impactante a coluna publicada na Folha de S. Paulo pelo professor de direito Oscar Vilhena Vieira que conta a história de Janaína Aparecida, uma mãe pobre em situação de rua que foi levada coercitivamente a uma cirurgia de esterilização por meio de duas ações promovidas por um membro do Ministério Público, sem direito de defesa. A história aconteceu no município de Mococa e escancara a abismo da justiça que nunca se envergonhou da maneira com que trata ricos e pobres.

O juiz não realizou audiências, não nomeou um defensor público para Janaína, não exigiu os documentos de consentimento da mulher e com os atrapalhamentos já conhecidos, fez com que recurso do município só chegasse ao Tribunal de Justiça de São Paulo quando a mutilação já havia ocorrido. Mesmo com uma Constituição que proíbe o Estado de interferir forçosamente na decisão de maternidade e paternidade do indivíduo, o promotor usou de uma ação civil pública para ferir a dignidade de Janaína.
Essa perversidade judicial abre espaço para o debate sobre campanhas que usam a expressão “planejamento familiar” para, na realidade, privar os mais pobres do direito à reprodução. Mais assustador é ver essa política discriminatória já abolida em diversos países, se tornar uma realidade proporcionada pelo próprio Ministério Público e como tudo que acontece de repugnante no Brasil, ser apoiada por Jair Bolsonaro, candidato à Presidência.

Durante os últimos 25 anos em que parasitou na Câmara dos Deputados, Bolsonaro defendeu a adoção de um programa de controle de natalidade com foco nos pobres com objetivo de reduzir a criminalidade e a miséria, segundo afirmou diversas vezes. Entre tantas oportunidades perdidas de ficar calado, Bolsonaro disse, certa vez, que era preciso dar meios para os ignorantes e pobres controlarem sua prole. Não é possível relativizar o discurso higienista e o caráter desumano das declarações, especialmente se lembrarmos que essa prática foi largamente utilizada pelo regime nazista, empregada na China para controle de natalidade e nos Estados Unidos, para reduzir a quantidade de pessoas consideradas indesejáveis, pobres ou com doenças mentais. O governo americano fez um pedido de desculpas pela política no ano de 2001 e pagou indenização às vítimas.

O Brasil também tem um passado para se envergonhar. Entre 1992 e 1993, uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) foi instaurada no Congresso para investigar casos de esterilização em massa em mulheres pobres e negras por instituições como Centro de Pesquisas de Assistência Integrada à Mulher e à Criança (CPAIMC), no Rio de Janeiro. Embora o inquérito tenha sido inconcluso quanto às denúncias, resultou na Lei de Planejamento Familiar de 1996.

Historicamente, a política de esterilização com finalidades demográficas contava com uma tolerância da sociedade. A CPAIMC, por exemplo, foi criada por um grupo de médicos em 1974 a partir de recursos do Fundo da População das Nações Unidas e em seguida, de agências americanas “preocupadas com o crescimento de habitantes no planeta e a capacidade de geração de alimentos para todos”. Havia também o componente ideológico. Um suposto aumento de miseráveis daria sustentação a movimentos comunistas. Até 1986, a entidade também testava pílulas anticoncepcionais em mulheres pobres.

O Dr. Hélio Aguinaga, responsável pelo centro, sustentava que sempre procurou “fazer mais bem do que mal” e estava convicto que tinha diante de si a missão de conter o crescimento populacional e garantir o desenvolvimento social do Brasil. Não funcionou. Isolada e acusada diretamente de praticar eugenia, a entidade fechou suas portas no ano da CPMI.

A lei do planejamento familiar, criada em resposta a essa experiência, estabelece diretrizes relacionadas a ações preventivas, educativas, acesso a métodos de contracepção como livre exercício da constituição de uma família, proibindo qualquer ação de controle demográfico. Também estabelece regras claras para quem, ao contrário de Janaína, deseja realizar uma vasectomia ou laqueadura: filhos vivos, 60 dias entre manifestação da vontade e a cirurgia e informações claras sobre irreversibilidade do ato.

Defensores da esterilização compulsória dos mais pobres são outsiders deles mesmos e pregam uma doutrina que não tem mais espaço de legitimidade em países sérios, que é a máxima do “pobre não pode ter filho”, Inclusive, poucos são os filhos gerados em momentos de racionalidade econômica do casal. A história de Janaína é uma aberração jurídica que comprova a desigualdade de direitos. Todos temos direito a procriar e o Estado deve se organizar para oferecer o instrumental básico para que esses filhos, que também são dele, cresçam em uma sociedade saudável. Esterilização de massa é, como canta os Racionais, sorriso de Hitler no inferno.