Por Agatha Justino*
De tanto repetirem que a realidade brasileira superou House of Cards, a Netflix parece ter aceitado a piada como uma provocação e lançou aos lobos a série “O Mecanismo”. O incômodo se alastrou rapidamente, especialmente entre os simpatizantes da esquerda. Enquanto o crítico Pablo Vilaça iniciou uma campanha de boicote ao serviço de streaming, Dilma Rousseff, Lula e outros políticos foram à mídia acusar o produto de assassinar reputações. Porém, como afirmou o colega Chico Barney, a única reputação assassinada pela série é a do ator Selton Mello.
O primeiro e maior pecado do Mecanismo é reivindicar o uso da dramatização e ainda assim, não superar a realidade. Desde os protestos de junho de 2013, os eventos políticos seguem cavando buracos no tempo e nos levando a caminhos que jamais podemos prever. São acontecimentos recentes em que não só as notícias, mas os desdobramentos nos nossos universos particulares seguem dramaticamente vivos. Não lembramos só das eleições como o momento democrático e de escolha, lembramos das discussões acaloradas na família e no trabalho. Neste sentido, Padilha deveria ter respeitado melhor as memórias do brasileiro, erro que já havia repetido em relação aos colombianos ao desenvolver Narcos.
Em Narcos, a mistura de ficção com realidade agradou o público brasileiro, não gerou protestos e prendeu a atenção, mas não funciona bem assim quando vamos conversar com colombianos. Há uns meses, em conversa com o diplomata colombiano Sérgio Escobar, identifiquei um sentimento de revolta em relação à série, que na época fui incapaz de compreender, não apenas por gostar de Narcos, mas por não ser parte daquele tempo e espaço em que é baseada.
Escobar me falou sobre como as “mentiras” propagadas pela série eram uma exploração da dor de muitos colombianos vivos e como produto, não apresentava o valor histórico que na concepção dele, era essencial. Me indicou outros livros e filmes melhores para entender o que aconteceu naquele período e foi categórico ao dizer que preferia que a vida de Pablo Escobar fosse contada ao mundo da maneira correta.
Diferente de Narcos, entretanto, o Mecanismo cria momentos de ansiedade, mas como um todo não empolga. A narração de Selton Mello como o policial Ruffo é cansativa demais e as explicações sobre a corrupção são extremamente clichês. Já os elogios deixo para o ator Enrique Diaz, no papel do doleiro Roberto Ibrahim e para a representação da família do diretor da Petrobras.
Tratando como experiência pessoal, a melhor contribuição do Mecanismo foi a motivação para construir um retrospecto da história recente. Assistindo com o Google aberto, entrei em contato com pedaços da história política brasileira com as quais não era familiarizada, como o caso do Banestado.
O Mecanismo da ficção é muito mais meia boca que o da realidade, por isso não merecia tanto alarde ou boicote. Aliás, se assistir à história brasileira fosse realmente capaz de nos ensinar algo, já teríamos aprendido que a revolta, no geral, é um sentimento de tiro curto e que tem sido particularmente utilizada para obtermos justamente o oposto daquilo que foi solicitado. No caso, o barulho da esquerda virou ferramenta de marketing da Netflix.
* Texto publicado na edição de 31 de março de 2018 do jornal A União