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O quadriênio

publicado: 18/06/2018 11h21, última modificação: 18/06/2018 11h21


Agatha Justino

De quatro em quatro anos, ao primeiro sinal de Copa do Mundo, há um chato que se levanta. Não apenas um chato comum, mas um chato com uma missão — no caso, provar que um possível desempenho ruim da seleção exerce influência positiva nas eleições que acontecerão em outubro. Há boatos que esse é o mesmo indivíduo pedante que reclama do carnaval, feriados e qualquer manifestação de felicidade coletiva.

Essa noção clássica do futebol e da Copa como “pão e circo” eram mais comuns no espectro à esquerda de antigamente. A militância argumentava que a paixão pelo esporte reprimia o conflito entre classes e docilizava o trabalhador em relação ao patrão nos momentos de vitórias. Havia também uma ideia de que o trabalhador reduzia a compreensão da sua própria realidade material e social. A expressão “ópio do povo”, inclusive, surgiu quando Nelson Rodrigues decidiu usar uma frase de Marx (“religião é ópio do povo”) para ironizar os esquerdistas que desprezavam os jogos em uma das crônicas do livro “A Pátria de Chuteiras”.

A construção da ideia de que a vitória na Copa de 1970 foi utilizada para encobrir as torturas que foram marca do obscuro governo Médici fortaleceu a tese do futebol alienante. De fato, o General era um fanático pelo torneio e fez de tudo para associar sua imagem à da Seleção desde o início: deu palpites públicos sobre os jogos, telefonava para os jogadores e deixou como uma das fotos mais icônicas da história brasileira, sua imagem ouvindo a partida em um radinho de pilha, enrolado em uma bandeira.

Para a Ditadura, tratava-se da união perfeita entre o sentimento patriótico proporcionado pelo esporte e o projeto de criação de uma identidade nacional com viés ufanista comum aos regimes de exceção. Para muitos militantes de esquerda e críticos, comemorar o tri era compactuar com o regime. Entretanto, a adesão da população e o bom humor brasileiro estava mais associado ao crédito fácil, oportunidades profissionais e ao mercado abarrotado de novidades tecnológicas com TV em cores, toca-fitas, a possibilidade de comprar um Corcel e a casa própria pelo BNH. Foi o “milagre econômico” que formou a base geradora de consentimento da classe média em relação ao aparato repressivo. O mundial foi só mais um elemento no marketing bem estruturado da grandeza nacional.

Ainda assim, os efeitos no humor da população nem sempre se refletem nas urnas. Apesar da estrutura montada em seu favor, a Ditadura e seu partido oficial, a Arena, tiveram uma falsa vitória nas eleições para a Câmara na época. Falsa por que embora tenha obtido 70% dos votos válidos para Câmara e 60% do Senado, houve uma abstenção e um número expressivo de brancos e nulos que davam o tom do tamanho da oposição. Um contraste em relação ao que aconteceu em 1966, quando o Brasil foi eliminado na primeira fase da Copa da Inglaterra e os governistas elegeram 68% dos deputados federais e 82% dos senadores com uma participação expressiva.

Se 1970 foi bom para governo e Seleção, quatro anos depois, a situação mudou. A participação na Copa foi desastrosa e a Arena sofreu uma grande derrota nas urnas, mais pela inédita presença do MDB na TV para apresentar propostas que pela derrota em campo. A Seleção perdeu em 1978 e 1982, mas ditadura manteve a maioria no Legislativo.

Ao longo dos anos, a relação entre o desempenho da seleção e a manutenção de um determinado grupo no poder seguiu imprevisível. Fernando Henrique Cardoso já afirmou que a vitória de 1994 favoreceu a execução do Plano Real e a eleição dele à Presidente. Em 1998, venceu novamente mesmo com a rasteira que a França aplicou no Brasil. Em 2002, o penta veio e deu vitória à oposição iniciando a era PT. Lula e Dilma conseguiram sucesso nas urnas mesmo com as derrotas que ocorreram em 2006, 2010 e 2014, que foi especificamente vexaminosa.

As manifestações de orgulho e alegria pelas cinco conquistas da Seleção Brasileira ou a decepção ocasionada pelas derrotas não funcionam como elemento alienante ou politizador da população. Portanto, quando se pensa nas razões do nosso estágio de desenvolvimento, há que se falar em políticas de governo, ou seja, decisões deliberadas que tornam o Brasil de fato, atrasado e desigual, que estão mais relacionadas a fatores como sistema tributário que ao fanatismo por Neymar.

A verdade é que mesmo envolto a escândalos de corrupção, má gestão e da apatia de muitos, o futebol continua sendo instrumento de mudança social, proporciona alegrias e pode ser palco de manifestações políticas. Se falarmos da relação da Copa de 1970 com a Ditadura, não podemos citar apenas o axioma de que o torneio sustentou Médici. Precisamos lembrar de figuras como o técnico João Saldanha, que usou a exposição para entregar a autoridades internacionais um dossiê sobre os desaparecidos, peitou o General na mídia e foi demitido por isso. Para João Saldanha, “os fatos históricos desmentem que o futebol sirva para escorar governos. O que escorava governo era o tanque”. Curiosamente, o perseguidor e o perseguido eram gremistas.