Agatha Justino
“Deixa isso pra lá”, me respondeu um seguidor quando publiquei imagens de algumas vítimas do Coronal Brilhante Ustra. As eleições de 2018 foram reveladoras quanto ao brasileiro, em caráter e personalidade, mas de tudo, o desprezo pela história e a incapacidade de aprender com a experiência estão entre as que mais me causaram perplexidade. Sugerir o apagamento daquilo que nos envergonha é um jeito peculiar de minimizar nossa cumplicidade com os erros do passado. Por aqui, frases infelizes não duram até quinta-feira e o passado vai junto com o lixo, para o esquecimento ou reciclagem – que é o nosso atual momento. É comum dizer que de quinze em quinze anos, o Brasil esquece dos últimos quinze anos e que por aqui, até o que aconteceu é incerto.
Lembrar as desumanidades que ocorriam nos porões e a censura como marca registrada de um governo intolerante às críticas é essencial, mas insuficiente em termos de construção de uma memória, principalmente por que boa parte da nossa estrutura como nação é reflexo do aconteceu entre 1964 a 1985 no âmbito social e econômico.
Embora a sucessão de generais na presidência, os Ministérios da Fazenda e Planejamento era reduto de civis com poderes de fazer inveja a um rei medieval, nas palavras de Maílson da Nóbrega. Dessas casas participaram liberais do porte de Roberto Campos, Octávio Gouveia de Bulhões, Antônio Delfim Netto, Hélio Brandão e Mário Henrique Simosen com apoio e carta branca de muitos empresários. Foi o governo Castello Branco responsável pelo modelo de desenvolvimento com prioridade a um programa de estímulo ao investimento estrangeiro e incentivo às exportações com desvalorização do cruzeiro em relação ao dólar. Controlou salários, reduziu idade mínima para aposentadoria, criou o FGTS, o BNH e enquanto os opositores agonizavam. A partir das bases criadas no governo Castello, no período obscuro do regime entre 1968 e 1973, o país chegou a ter 10% de crescimento.
Durante o “Milagre”, a classe média feliz com o crédito fácil e o acesso a bens como TV em cores fingia não ver a concentração de renda e a escalada de violência que acontecia. Foi um período de incubação do pensamento que levou várias gerações a acreditar em justiçamento como solução para os graves problemas de segurança pública. A oposição da figura do bandido ao trabalhador tornou-se ameaçadora e fez com que a sociedade aceitasse a atuação de grupos de extermínio. São os mesmos brasileiros que hoje normalizam a violência policial que prejudica os negros e pobres e se sentiram vingadas com a vassoura do Capitão Nascimento.
Por outro lado, a censura combinada a uma educação que contraria o caráter libertador do conhecimento minava o desenvolvimento de uma sociedade crítica. Na escola, crianças não aprendiam filosofia ou sociologia, mas “Educação Moral e Cívica”, formador um patriotismo frágil e avesso à reflexão. Eram horas de culto ao Brasil, símbolos e moralidade a partir de “valores familiares”. “Os centros cívicos deverão, até mesmo, elaborar o ‘código de honra do aluno’ e considerarão o civismo nos três aspectos fundamentais: caráter, com base na moral, tendo como fonte Deus; amor à Pátria, com capacidade de renúncia; e ação permanente em benefício do Brasil”, diz uma reportagem da época. Não é a toa que o brasileiro médio é “intelectofóbico”. EMC foi criada pela ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, tornada obrigatória pelo governo Costa e Silva e extinta por Itamar Franco, que não considerava a disciplina coerente com um ambiente democrático. Ficamos culturalmente viciados em novelas, acreditamos em uma falsa grandeza nacional e numa harmonia racial fabricada para aplacar a consciência.
Quando o governo dos militares finalmente chegou ao fim, não havia mais o milagre, mas uma inflação de 235% e um país completamente endividado. A sociedade era o que Edmar Bacha chamava de “Belíndia”, um reino de concentração de renda em que uns viviam na avançada Bélgica e outros em estado de pobreza absoluta como na Índia. Polícias militares criadas por decreto permanecem até hoje e os autores de grandes atrocidades nunca foram punidos. Diferente do que acontece no Chile e Argentina, onde a Ditadura Militar é um período do qual a população não alimenta saudosismos, os brasileiros não quando um notável sanguinário do período é exaltado. Veja bem, não se trata de homenagens aos próprios presidentes do período, mas de um indivíduo cuja única função no governo era ser o operador de torturas e assassinatos.
Regimes opressores não existem sem a adesão popular, classe empresária e até de intelectuais, que vislumbraram a possibilidade de colocar em prática seus planos econômicos sem a perturbação democrática ou questionamentos da mídia. Os responsáveis pelos excessos nunca manifestaram um gesto de contrição ou autocrítica pelo legado desastroso do período militar que até hoje se manifesta nas estruturas políticas e sociais que temos. Passamos por diversas gerações que falharam na tarefa de fazer o futuro o presente e nenhuma época. Por isso, meu caro seguidor, eu não deixarei este ou qualquer outro pedaço da história para lá.
Texto publicado na edição de 28.10.2018 do jornal A União