Ao longo de 2020, muitas histórias dos Beatles serão lembradas. O ponto de partida, 1970, foi ano em que os Beatles, efetivamente, chegaram ao fim. Mas não é o único fato que merece nota. Afinal, tanta coisa aconteceu naquele ano: saiu o álbum Let it Be (precedido pelo single de mesmo nome, lançado em 6 de março daquele ano), Paul McCartney e Ringo Starr estrearam suas discografias solo, George Harrison deu ao mundo a obra-prima All Things Must Pass e John Lennon, após três discos experimentais, entregava o que os fãs queriam ouvir: Plastic Ono Band, descrito por um amigo meu como o melhor “disco Beatles” feito por um ex-Beatle (mais: fãs haverão de lembrar, no próximo 9 de outubro, os 80 anos do autor de ‘Imagine’).
Há 40 anos, Lennon disse que o sonho havia acabado. Era o ponto final de uma longa história de brigas, desgastes, batalha de egos e desacordos, afinal, o The Beatles era maior que os próprios Beatles, e boy, esse foi um fardo que eles carregaram por muito tempo (como canta Paul em ‘Carry that weight’).
O fim da mais famosa banda pop de todos os tempos não é algo simples de ser contato em poucas linhas. Envolve muita coisa. Segundo os livros, o fim da banda começou ali pela ressaca da beatleamania. O quarteto chegou a conclusão que não dava mais para fazer shows - afinal, naquela loucura toda, o que menos importava para os fãs - as fãs, sobretudo - era a música. A gritaria gerada em estádios impedia que a música fosse ouvida, restando assim um burburinho que não interessava aos Beatles.
Para Lennon, a banda meio que perdeu o sentido ali. Mas eles continuaram, agora numa versão mais caseira, trabalhando em estúdio. Foi a fase que se iniciou com a gravação de Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, repleta de experimentalismo e trucagens. O próprio Lennon parece não ter gostado do resultado, reclamando que a vontade de Paul havia sido preponderante. Para o primeiro, os discos tinham que ter um punch, uma sonoridade mais agressiva, mais rock ‘n’ roll; o segundo era da praia das ‘Silly love songs’ (canções de amor bobinhas, em tradução livre)
Esses gostos antagônicos, traduzidos em sonoridades distintas - como o Lennon de ‘Come together’, versus o Paul de ‘Let it be’ - iria permear toda essa fase e agravar o abismo que havia entre o grupo, incluindo aí os outros dois, George e Ringo, que procuravam abrir espaço na parceria Lennon-McCartney para ascender da condição de coadjuvantes - por essa época, George chegou a reclamar que Yoko tinha mais moral que ele nas decisões das banda.
No imaginário popular, Yoko Ono ficou como a pivô do fim dos Beatles. Depois de mergulhar nas muitas biografias que saíram sobre o quarteto - incluindo as biografias “solo” de seus integrantes - eu cheguei a conclusão que Yoko pouco teve a ver com o fim do quarteto.
A artista japonesa entrou na vida de Lennon logo após a separação do ex-Beatle com Cinthya. Lennon encontrou em Yoko sua cara-metade artística, e até renovou seu fôlego enquanto criador. Como o dono da bola, ou seja, o cara que criou The Beatles, se achou no direito de ter a figura nipônica nos ensaios e deixou que ela tivesse voz ativa na criação de algumas canções. Dizia que os dois eram um só, a ponto de estabelecerem uma comunicação não-verbal entre eles que acabou por cortar a interação com os demais integrantes dos Beatles que, por sua vez, estavam pouco se lixando.
Mas Yoko não era o problema perto da sarna que os quatro arrumaram para se coçar: a gravadora Apple Corps. Eu confesso que não lembro de quem foi a ideia, mas quem disse que Paul, George, Ringo e Lennon, famosos e ricos, teriam tino de executivo para tocar a indústria, contratando artistas, planejando gravações e lançamentos de discos? Claro que isso não iria dar certo, apesar dos esforços de Paul, o mais empreendedor dos quatro.
A questão da Apple Corps - que acabou por levar os quatro rapazes de Liverpool ao tribunal - foi mais desgastante do que a eminência parda de Yoko. Mas ainda havia uma empada azeda nesse camarão estragado: Allen Klein, retratado como um oportunista que fizera a cabeça do casal Lennon-Yoko para se tornar o empresário dos Beatles (sob os protestos de Paul, que nunca fora com a cara do sujeito).
Allen Klein nem queria ser o quinto Beatle; queria ser o Beatle nº 1! O que os livros relatam é que foi um verdadeiro inferno a relação entre os cinco: de um lado, um empresário de olho no gordo faturamento da marca The Beatles; de outro, quatro Beatles de saco cheio de estarem juntos.
Mesmo assim, em 1969, um ano antes de jogarem a toalha, os quatro Beatles conseguiram entrar em estúdio e criar algumas das melhores canções já feitas pelo quarteto. Boa parte dessas faixas iriam formar os dois últimos discos da banda: Get Back e Abbey Road. Abbey Road acabou saindo primeiro, em 26 de setembro de 1969. Get Back, embora tenha sido gravado antes, só foi lançado depois, em 8 de maio de 1970, sob o título de Let it Be e acompanhado de um filme que mostrava o climão entre os quatro no ensaio das músicas para o disco.
Esse filme, que nunca chegou a ser lançado oficialmente em DVD, deverá, enfim, ter seu lançamento confirmado em home-video em maio próximo, com cópia restaurada tanto em DVD, quanto em blu-ray. Pelo menos é isso que os fãs aguardam, após os relançamentos turbinados dos principais discos do quarteto nesses últimos anos.
*coluna publicada originalmente na edição impressa de 10 de março de 2020