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‘Cangaço novo’ é arretado!

publicado: 22/08/2023 10h33, última modificação: 22/08/2023 10h33
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Ubaldo (Allan Souza) e Zeza (Marcélia Cartaxo) em cena de ‘Cangaço Novo’- Foto: Prime Video/Divulgação

por André Cananéa*

Na primeira metade do século 20, o artesão pernambucano Virgulino Ferreira da Silva se viu envolvido com um bando de criminosos. Como o temível cangaceiro Lampião, a história de Virgulino se confunde com a narrativa de muitos filmes que têm assalto e vingança como trama. Lampião e seu bando tocaram o terror, literalmente, no interior de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, mas eu lembro de minha bisavó, contemporânea do cabra, dizer que, para uns, Lampião era bandido, mas para outros, ele foi um herói.

Cangaço Novo, produção da multinacional Amazon Prime, é uma releitura dos tempos de Lampião, e do Cangaço, de modo geral, tanto o é que ele e Maria de Bonita fazem uma breve aparição em um dos oito capítulos da série, todos eles já disponíveis na plataforma Prime Vídeo. Nessa releitura, existe o bando, que não tem chapéu de couro nem mosquetão Mauser, mas usa jeans, telefones celulares e armamento pesado. E não é só isso: a “Maria Bonita” de hojenão é coadjuvante, é uma líder, é brava e valente, sem medo de morrer ou de matar.

A produção dirigida pelo baiano Aly Muritiba e pelo paulista Fábio Mendonça é um dos melhores programas do streaming de 2023, se não for o melhor. A premissa é intrigante e a execução - com muita violência, briga, tiroteio e carros capotando ao Deus dará - entrega o que promete: muita ação em uma história na qual nem todo bandido é mal, e o suposto mocinho não é de todo bom.

A história é bastante familiar a quem mora no Nordeste: um grupo de bandidos assalta bancos em pequenas cidades. Mas o bando muda com a chegada de um ex-militar e ex-funcionário de banco que sai de São Paulo em busca de uma herança em uma cidade fictícia do interior do Ceará.

Esse personagem é Ubaldo (Allan Souza), um dos três filhos de Amaro Vaqueiro, bandido com senso de equidade social que acabou morto quando Ubaldo tinha só dez anos de idade. A criança cresceu em São Paulo sem lembrar das suas origens. Mas ao reencontrar as irmãs Dinorah (Alice Carvalho) e Dilvânia (Thainá Duarte), seu gene vai emergindo à ponto de se estabelecer com o bando de Dinorah – banditismo por uma questão de classe, como diria a canção da Nação Zumbi - e ser o “milagre” que a comunidade religiosa da tia Zeza (a nossa Marcélia Cartaxo) tanto a aguardava.

Ubaldo chega à região às vésperas de uma eleição municipal, na qual sua família integra a oposição. O candidato deles é o empresário Paulino (outro paraibano, Daniel Porpino), casado com Leinneane (Hermila Guedes), amiga de infância de Ubaldo. Se o bando é um núcleo, a comunidade liderada por Zeza é outro, o casal forma um terceiro núcleo, que vai se confrontar com a família Maleiro, cujo prefeito, Gastão (Bruno Bellarmino), é filho do poderoso e inescrupuloso senador Deocleciano (mais um conterrâneo, Luiz Carlos Vasconcelos).

Esses quatro núcleos impulsionam a trama, rodada, majoritariamente, na Paraíba, com locações em Cabaceiras (onde fica a comunidade de Zeza), Campina Grande, Pocinhos, Puxinanã, Queimadas, São João do Cariri, Boa Vista, Boqueirão e até na Praia de Coqueirinho, no Conde. Entretanto, nenhum município é nomeado na série, afinal a história se passa no Ceará, em cidades fictícias.

Na trama não há paraibanos, pernambucanos ou, sequer, cearenses - o enredo, acertadamente, trata todos como nordestinos que são. O foco é reproduzir o cotidiano do interior do nosso Nordeste, do jeito de vestir ao jeito de falar, com o verniz de filmede assalto e thriller político, na pegada universal dos enredos audiovisuais que se espalham no mundo.Afinal, Cangaço Novo estreou sexta-feira passada não só no mercado brasileiro (que colocou a série no TOP 1 dos mais vistos da plataforma), mas em 240 países - e vale a curiosidade de ouvir nossos atores dublados em inglês, alemão, espanhol, polonês e até japonês.

A série ainda tem um dos elencos mais coesos de uma produção rodada por aqui. Além do mais, nessa releitura, há subtextos fundamentais, como o protagonismo feminino em um campo historicamente marcado pelo patriarcado, muito bem representado pelo vértice formado por Marcélia, a intensa potiguar Alice Carvalho e a pernambucana Hermila Guedes - isso sem falar na “pitada” críticaao bolsonarismo, que o enredo coloca nos antagonistas dos nossos queridos anti-heróis.

Cangaço Novo deve, e merece, alçar voos altos. É o tipo de série que todo brasileiro deveria ver, em especial, nós, do Nordeste, não só porque lá está nossa gente, e nossas cidades, nossa cultura, nossas raízes. Mas porque é uma grande lição de humanidade. E que venha a segunda temporada!

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 22 de agosto de 2023.