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‘Elis & Tom’, 50 anos depois

publicado: 16/01/2024 11h11, última modificação: 16/01/2024 11h11
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Cena do documentário em longa-metragem ‘Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você’- Foto: Reprodução

por André Cananéa*

Em 1974, Elis Regina viajou para Los Angeles (EUA) para gravar um disco com Tom Jobim tendo como repertório a obra jobiniana, que chegara ao mundo através da Bossa Nova. Elis levou na bagagem o marido César Camargo Mariano e a banda dela, formada pelo próprio César (piano), Hélio Delmiro (guitarra), Luizão Maia (baixo), Oscar Castro-Neves (violão) e Paulo Braga (bateria).

Não foram recebidos de braços abertos pelo Maestro Soberano, que, de largada, quis saber do produtor do LP Aloysio de Oliveira quem faria os arranjos, ao que ouviu como resposta: o César! A reação de Tom foi fulminante: – Você?! (se dirigindo ao jovem César) Bete, ligue para o Claus Ogerman, referindo-se ao arranjador alemão, responsável pelo LP Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim (1967), entre tantos outros discos de Jobim.

Tudo isso por causa de uma falha na comunicação: a participação de Tom no disco de Elis era um presente da gravadora Polygram pelos 10 anos da cantora na companhia. Acontece que faltou deixar claro isso para Tom, que achava que o disco era dele. É por isso que ao chegarem no MGM Studios com um piano elétrico e amplificadores para guitarra e baixo, Tom Jobim, dado mais a música de câmara e ao jazz que ao universo pop da música eletrônica, estranhou: –Ué, cadê o piano (acústico)? Cadê o contrabaixo acústico?

Foram dias de apreensão, como relatam os entrevistados no documentário Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você, disponível, agora, na Globoplay. Nas imagens feitas à época em 16 mm (restauradas em 4K) e utilizadas no longa, é possível ver Elis Regina roendo as unhas, esfregando o rosto e visivelmente desconfortável, assim como o bullying de Jobim para cima de Camargo Mariano – que no filme, parece, enfim, exorcizar o perrengue de 50 anos atrás.

Mas não é disso que majoritariamente o filme de Roberto de Oliveira (com roteiro dele e de Nelson Motta) é feito, e sim dos momentos de tranquilidade e ensaios que Elis, Tom e César passaram naquela temporada, após encerrado o mal estar inicial. As imagens de época mostram muita conversa, descontração (Tom até conta uma piada!) e ensaios, com Jobim ensinando a Elis o jeito jobiniano de se portar – pelo que se vê, dá a impressão que a equipe de filmagens que acompanhou as gravações estava lá para extrair algo promocional para o LP, não para documentar o processo propriamente dito.

A lista das pessoas ouvidas para contar a história de Elis & Tom, o disco, não é pequena e inclui gente do naipe dos lendários Ron Carter e Wayne Shorter, que faz um registro precioso para os anais da história da MPB: por causa de uma briga doméstica entre Elis e César Camargo Mariano, a cantora gaúcha deixou de gravar um disco com o renomado saxofonista norte-americano.

Mas o fundamental são os depoimentos de alguns dos personagens principais da criação de Elis & Tom, ou seja, do então presidente da Polygram, André Midani, do diretor artístico da gravadora, Roberto Menescal, e de muitos dos músicos que participaram das gravações, assim como de Humberto Gatica, chileno radicado nos EUA que viria a ganhar Grammys com discos de Michael Jackson, Celine Dion e Michael Bublé, mas que, na época, foi alçado de assistente de estúdio a engenheiro de som, pois era o único que chegava perto do português ali no estúdio, afinal falava espanhol (?!).

Eles explicam não só a proposta do projeto, como revelam histórias de bastidor e destrincham a sonoridade do álbum, resultante do encontro de Jobim e, sobretudo, César, que assina o arranjo de 11, das 14 faixas do álbum (Tom assina três, canta em quatro e toca em seis gravações). Eles ainda refletem sobre o legado do disco – um deles, de ter tornado Elis, a partir dali, uma cantora menos histriônica, mais intimista ou, num termo mais apropriado, “jobiniana”.

Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você está longe de ser um Get Beck, o colossal filme de Peter Jackson sobre a gravação de Let It Be, dos Beatles. O filme de Roberto de Oliveira é incompleto. Falta, por exemplo, os debates em torno do repertório. O disco traz releituras soberbas para ‘Águas de março’, ‘Pois é’, ‘Só tinha de ser com você’, ‘Retrato em branco e preto’ e ‘Por toda minha vida’. Lá pelas tantas, Jobim apresenta a sofisticada valsa ‘Chovendo na roseira’, e avisa que nunca deixou ninguém gravar, pois “é música para profissional”. Mas ele sabia, como nós sabemos, que Elis a tiraria de letra, como verdadeiramente o faz.

Porém, o que levou o time a descartar a gravação de ‘Bonita’, resgata apenas numa edição especial, em CD e DVD áudio, lançada pela Trama em 2004, isso a gente não fica sabendo. Infelizmente, o filme não traz “a mão na massa” propriamente dita, com pouquíssimas cenas em que podemos ver Tom, Elis e a banda trabalhando. Ao invés disso, somos brindados com um belo tributo a um dos grandes encontros da história da Música Popular Brasileira.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 16 de janeiro de 2024.