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‘Nevermind’, 30 anos depois

publicado: 28/09/2021 08h00, última modificação: 27/09/2021 10h13
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tags: nevermind , nirvana , André Cananéa

por André Cananéa*

Na última sexta-feira, Instagram, Twitter, Facebook, Tik Tok e praticamente todas as redes sociais foram tomadas com imagens de um bebê, nu, embaixo d’água, mirando uma nota de um dólar pendurada em um anzol. A foto, há 30 anos, está associada a um dos discos de rock mais importantes de todos os tempos - a quem diga, até, que é o último grande de rock da história: Nevermind, do grupo Nirvana (e aquela criança, recentemente, moveu um processo por danos morais).

O 30º aniversário de Nevermind, na sexta-feira, veio acompanhado pela notícia de que, em novembro, o álbum será relançado em múltiplas edições, as mais caras oferecendo um pacote com cinco CDs e um blu-ray, ou então uma caixa com oito LPs contendo um sem número de ensaios e gravações descartados da mesa de edição, uma raspa de tacho endereçada a colecionadores e fãs mais ardorosos do trio, que teve vida curta - foi formado em 1987 e terminou em 1994, após a morte de seu vocalista, Kurt Cobain, que morreu para entrar na história como mais um integrante do funesto Clube dos 27.

Embora outros discos importantes tenham sido lançados naquele 24 de setembro de 1991 (um ano particularmente profícuo para o gênero do rock) - a saber, caso o leitor tenha curiosidade de ouvi-los na internet, Blood Sugar Sex Magic, do Red Hot Chilli Peppers, e Badmotorfinger, do Soundgarden -, é Nevermind o grande digno de nota, de culto e de (re)avaliação. O motivo? O mundo se rendeu à sonoridade agridoce que o Nirvana imprimiu ali, naquele repertório, faixas com guitarras altas, barulhentas, mas com arranjos extremamente palatáveis, melódicos, acessíveis ao sabor tanto de crianças de oito anos, quanto de idosos com 80.

OK, concordo. Até aí, não há nada de novo no reino da música pop, em especial, do rock. Os Beatles, para ficar em um único exemplo, fizeram isso circa a fase do álbum branco. Mas assim como os fab four, uma conjunção de fatores, comportamentos e uma narrativa histórica importante precisam ser observados para que se entenda o sucesso de Nevermind e sua expressiva vendagem de mais de 30 milhões de exemplares.

Via de regra, os começos das décadas costumam ser marcados por novos paradigmas comportamentais. Outro dia, escrevi sobre os discos lançados em 1971, um ano marcante para a história da música pop. Da mesma forma, o ano de 1981 ajudou a consolidar uma cena de rock pesado que atravessaria toda a década a bordo de narrativas de histórias medievais, mística e monstros, muitos solos de guitarra e cabeludos cuidadosamente desgrenhados.

Os anos 1990 não foram diferentes. Enquanto o Brasil redescobria a Tropicália com o Mangue Beat, lá fora era no circuito às margens das grandes gravadoras (que ainda mandavam na indústria) que estava a força criativa da música. Esse início de década era marcado pela cena de Manchester (no Reino Unido) e pelo fenômeno R.E.M. (nos EUA), sem falar em hip-hop, numa nova onda de R&B e toda uma conjuntura que rompia com a estética pasteurizada dos anos 1980 e apontava para um frescor livre de amarras e ordens de executivos.

Nessa esteira, um trio formado por três jovens em Aberdeen, cidade caipira no noroeste dos EUA, emergiu com bastante energia extraída apenas de uma guitarra, um baixo e uma bateria, adornados com um vocal rascante e inconformado de um ícone nato, o citado Kurt Cobain.

Ao contrário dos astros de rock que emergiram nos anos 1980, forjados com suas roupas coloridas, parte cantando sobre aventuras com dragões e bruxos, parte sobre namorinhos de portão que deram errado - Iron Maiden, Scorpions, Guns N’ Roses, Aerosmith, Def Leppard, Bon Jovi etc. - Cobain se mostrava como o bardo amargurado, criado em família disfuncional, com um punhado de letras confessionais, escritas na solidão de sua vida embaixo de uma ponte (biógrafos divergem dessa passagem) e com talento de sobra para compor versos autênticos e inventivos, capazes de injetar dubiedade entre uma marca de desodorante para adolescentes e conceitos juvenis petulantes.

 

Concordo com o colega jornalista Ricardo Alexandre, produtor do excepcional podcast Discoteca Básica, quando ele diz que Nevermind é muito fruto das contradições de Cobain, um sujeito capaz de tatuar a logo de uma gravadora independente no corpo, sonhando em fechar contrato com uma major, ou declarar que gosta de mulheres dispostas a um relacionamento aberto, mas tudo que ele queria era compor uma tradicional família “careta”.

Essas, e muitas outras contradições presentes nas entrelinhas de canções como ‘Smells like teen spirit’, ‘Come as you are’ e ‘In bloom’ , não prescrevem. E sua tônica, que conquistou um público repleto de contradições - adolescentes, em sua maioria - garante a perenidade e a renovação dessa obra-prima cunhada a vastas emoções e pensamentos imperfeitos.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 28 de setembro de 2021.