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‘O Urso’, delicioso prato audiovisual

publicado: 30/01/2024 12h00, última modificação: 30/01/2024 12h00
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Jeremy Allen White encarna o ‘chef’ que é a figura central da premiada série - Foto: FX/Divulgação

por André Cananéa*

Levando (até agora) 50 dos 78 prêmios ao qual estava indicada – incluindo um total de 10 prestigiosos prêmios Emmy – a série O Urso (The Bear, no original) é uma das melhores produções audiovisuais que eu vi em toda minha vida. Exagero? Experimente maratonar as duas temporadas, disponíveis no Star+, e depois me diga se há alguma hipérbole desnecessária nessa afirmação.

O Urso narra o cotidiano de trabalho de um grupo de cozinheiros nos subúrbios de Chicago (EUA), com uma particularidade: quem comanda a cozinha é um renomado chef, que largou o emprego dos sonhos de trabalhar no melhor restaurante do mundo (o Noma, que de fato existe na Dinamarca) para assumir a birosca que o irmão falecido deixou para a família.

O chef Carmy (Jeremy Allen White) é a figura central da história. Chega ao The Beef com seu know-how de excelência para dar um “up” no cardápio. Encontra um time sem qualificação e, muitas vezes, disposto à autossabotagem. Para piorar, a jovem Sidney (Ayo Edebiri), com a pasta repleta de diplomas de cursos na área, se propõe a trabalhar com Carmy na melhoria da Beef. Em linhas gerais, essa é a 1ª temporada.

Habilmente, roteiro, direção e edição vão mostrando o cotidiano dessa “máquina” de executar o cardápio, em que cozinheiros, garçons, administração e manutenção são peças complexas de um sistema igualmente complicado, afinal cada “chef” – como se comprimentam – tem seu talento para dar sabor aos pratos, mas também suas personalidades e suas vidas pessoais que se misturam e, invariavelmente, resultam em pratos indigestos. É disso que O Urso trata.

Friso bem esse tripé (roteiro, direção e edição), pois O Urso é uma série diferenciada nesse sentido: o enredo costura esplendidamente a relação entre os personagens, de modo a que a história flui bem para qualquer lado. As tiradas extrapolam o ambiente da comida: o seriado é uma grande metáfora das cadeias de trabalho, seja ela um restaurante, uma loja, um repartição pública ou até mesmo uma empresa de tecnologia mais descolada, cujo princípio seja a hierarquização do trabalho.

Um dos pontos nevrálgicos da 1ª temporada é quando os colaboradores mais antigos e sem qualificação formal passam a lidar com uma superior muito mais nova e cheia de cursos e metodologias contemporâneas. Isso não é algo que se vê apenas na cozinha de um restaurante, mas em praticamente todo ambiente de trabalho coletivo com pessoas de diferentes idades e posturas.

A 1ª temporada é ótima, mas a 2ª é melhor ainda. Nela, cada episódio foca na história de um personagem, geralmente mostrando que eles estão em busca de se superarem, tanto como pessoas, quanto como profissionais.

Há três episódios que chamaram muito a minha atenção: o seis, o sete e o 10º (e último). O seis (intitulado Peixes) já entrou para a história: nele, conhecemos a caótica mãe de Carmy (vivida extraordinariamente por Jamie Lee Curtis) e Michael (o falecido irmão que deixou o The Beef) durante um jantar de Natal em que toda a família (disfuncional, vale destacar) está reunida.

O episódio é um show de técnica, tanto pelo elenco afiado, quanto pelos enquadramentos, movimentação de câmera e edição exata para mostrar os conflitos, internos e externos, que movem Carmy desde o início da 1ª temporada – há análises afirmando que o chef tenta compensar sua vida pessoal bagunçada mostrando um lado profissional exemplar.

No episódio seguinte (Garfos), podemos conferir a transformação do errático “primo” Richie (Ebon Moss-Bachrach) em um supermaître, em um episódio repleto de grandes lições entregues em pratos de sutileza, criatividade e inteligência audiovisual. É um episódio repleto de closes (e aqui Bachrach se revela um grande ator) e imagens que dizem muito mostrando pouco, bem ao gosto de nós, cinéfilos.

O derradeiro episódio (O Urso) é a conclusão épica da jornada, a entrega do novo restaurante, e onde as pontas soltas são devidamente amarradas, dentro de uma lógica de muita ansiedade, mas também da necessidade de organização e eficiência, afinal a vida de todo mundo ali (da equipe) está em jogo. O plano sequência que domina boa parte da primeira metade do episódio já mostra que O Urso não se trata apenas de uma gastronomia refinada, mas de um produto audiovisual incrível para paladares exigentes e, ao mesmo tempo, uma grande série para o público comum. Importante é que todo mundo deve se deleitar com as duas temporadas de The Bear – e a 3ª começa a ser gravada agora, em fevereiro.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 30 de janeiro de 2024.