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‘Paêbirú’ “naked”

publicado: 07/06/2022 08h00, última modificação: 07/06/2022 10h45
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Gravação original do LP está disponível, de maneira oficial, no YouTube - Foto: Divulgação

por André Cananéa*

 

Paêbirú – O Caminho da Montanha do Sol é – ou já foi tido como – o LP mais raro e, consequentemente, o mais cobiçado da discografia brasileira. Lançado em 1975, o álbum duplo do paraibano Zé Ramalho e do pernambucano Lula Côrtes é repleto de misticismo, viagens da mente, psicologia e experimentalismos sonoros, misturando jazz, rock e ritmos regionais, com letras que remetiam à Pedra do Ingá e lendas indígenas, como a de Sumé. E, claro, muitas histórias de bastidor. A mais famosa, você conhece: boa parte da tiragem original do LP, gravado entre outubro e dezembro de 1974 no estúdio da gravadora Rozenblit, em Recife, foi levada pela enchente do Rio Capibaribe que inundou a cidade naquele ano, tragédia similar ao que aconteceu recentemente naquela região.

Mas o disco sobreviveu. Pelo menos a fita master, onde foram gravadas as 14 faixas, distribuídas nos quatro lados dos dois vinis (batizados de ‘Terra’, ‘Ar’, ‘Fogo’ e ‘Água’). E a nova prensagem, feita um ano depois, em 1976, trazia timbres e efeitos que não estavam na tiragem original, afinal, foram colocadas em um novo processo, em um moderno estúdio no Rio de Janeiro, uma vez que a tecnologia disponível na Rozenblit não permitia tais adornos sonoros. Após a mixagem, o disco também ganhou uma nova masterização.

É essa versão, a de 1976, que é mais difundida pelo mundo, inclusive com tiragens importadas, que independem da autorização dos detentores do direito da obra, no caso Zé e o finado Lula – lembrando que Zé Ramalho sempre desprezou Paêbirú, lançado originalmente três anos antes do LP de estreia do paraibano, o homônimo Zé Ramalho, que traz faixas como ‘Avôhai’ e ‘Chão de giz’ (e se o leitor for ao site oficial do cantor e compositor agora, poderá perceber que o disco de 1975 sequer integra a galeria discográfica do artista).

Esse processo lembra um pouco Let It Be, dos Beatles. Produzido por Phil Spector, ao invés do costumeiro George Martin, o álbum de 1970 ganhou overdubs, cordas e outros efeitos que, segundo revelou Paul McCartney, anos depois, fugiu muito às intenções do grupo, que queria uma sonoridade mais crua e direta. E isso levou o próprio McCartney, junto com os demais detentores do espólio dos Beatles, a lançar, em 2003, o CD Let it Be... Naked, sem as intervenções de Spector.

Na semana passada, no dia 1º de junho, a Rozenblit, através de seu canal no YouTube, disponibilizou, gratuitamente, essa versão “naked”, por assim dizer, de Paêbirú. É a primeira gravação, nua e crua, sem os efeitos adicionados em 1976, impressa, apenas, naquela tiragem que se perdeu na enchente e, cujos LPs remanescentes, hoje valem uma pequena fortuna.

No YouTube, a gravação, oficial, está remasterizada, dividida por faixas, e a própria descrição do registro sugere que, para uma melhor experiência, recomenda-se ouvir a gravação com fones de ouvido (dos bons, de preferência). Acompanha a descrição um texto explicativo sobre o disco contando, inclusive, como surgiram as duas versões em um intervalo de tempo tão curto, revelando que 80% da tiragem foi perdida no dilúvio. 

Em entrevista ao jornalista José Teles para o blog TelesToques, Hélio Rozenblit, produtor de Paêbirú e curador do acervo da Fábrica de Discos Rozenblit, fundada por seu pai e tios em 1953, revela não saber quantos discos se perderam, ou sobreviveram, da tiragem original.

“Acredito que o planejamento inicial era em torno de 500 cópias, talvez até menos que isso”, respondeu à José Teles. “O trabalho gráfico desse produto era muito audacioso e caro para ser realizado, (portanto) uma tiragem grande seria inviável, além de ser um disco bastante experimental, dificultando a penetração no mercado popular”.

Os cerca de 20% da tiragem que se salvou, possivelmente escapou por já estar longe do depósito da Rozenblit quando a água tomou conta do lugar. Na mesma entrevista, Hélio revela que alguns exemplares foram cedidos “aos artistas presentes no disco”, sem especificar quais. É que além dos titulares Zé Ramalho e Lula Côrtes, constam, entre outras, as participações de Alceu Valença, Geraldo Azevêdo, Zé da Flauta e, pelo menos, mais três paraibanos: os músicos Jarbas Mariz e Hugo Leão e o artista plástico Raul Córdula, responsável pelo projeto gráfico, que dia desses me contou que guardava, com carinho, seu troféu: um exemplar da tiragem original.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 7 de junho de 2022.