A gente tem uma mania danada de ranquear as coisas: melhor filme de todos os tempos; melhor disco; melhor carro do mercado; melhor isso, melhor aquilo… Ao rever, tempos atrás, Três Homens em Conflito, não tive dúvidas: tá aí o melhor faroeste de todos os tempos. Depois, ao revisitar Era uma Vez no Oeste, mudei de ideia: este era o melhor bangue-bangue que vi na vida.
Nesse fim de semana, vi, pela terceira vez, Rastros de Ódio (1956), e adivinhe o que aconteceu? Bem, antes que eu diga que a obra-prima de John Ford é o melhor western já feito na história do cinema, joguei às favas essa coisa de primeiro, segundo, terceiro… afinal, estão aí três filmes fantásticos, que estão acima de qualquer ranking ou escala, e que essa história de “o melhor” é uma grande bobagem. Sempre haverá bons e maus filmes, e acima desses, as obras-primas.
Então, Era uma Vez no Oeste tem, para mim, o peso de Guerra nas Estrelas entre os filmes de ficção científica, assim como Rastros de Ódio é o 2001 - Uma Odisseia no Espaço do faroeste. Não consigo dizer quem é o melhor dos dois, se o filme de George Lucas, ou de Stanley Kubrick, pelo fato de que os dois são fantásticos, e dialogam comigo, com minhas referências, com minhas bagagens culturais, humanas e sociais, de maneira diferente: o primeiro, por ser uma “ópera espacial” fundamentada na jornada do herói, com uma história de mocinhos e bandidos muito empolgante. O segundo, pela maneira sofisticada como apresenta suas ideias e narra sua história.
Rastros de Ódio é uma filmaço! Além de uma tremenda história muito bem contada – e nesse aspecto, depois de ter visto cerca de 20 filmes de John Ford, asseguro que ele é um mestre em oferecer um filme com uma narrativa soberba, a saber As Vinhas da Ira, Depois do Vendaval, O Último Hurra etc. etc. etc… – é um deleite para os olhos, não só por ele ter filmado no Monument Valley, in loco, desbravando um terreno árido e a cerca de 300 km de qualquer cidade minimamente civilizada naqueles 1955, mas por tê-lo feito de uma maneira única, com inteligência e criatividade.
Através dos extras que acompanham a caprichadíssima caixa Ford Essencial, lançada este mês pela Versátil, fico sabendo que o projeto The Searchers foi ambicioso, afinal incluía levar água, eletricidade e montar uma minicidade, com tendas para a equipe e casas cenográficas, no meio do deserto, onde só havia calor, poeira e alguns índios nativos – que segundo os relatos, elevaram Ford ao status de “líder” (ou “Líder Alto”, “Natani Nez”, na linguagem nativa, além de terem lhe presenteado com a pele de uma animal abençoada por espíritos indígenas, a mais alta honraria da tribo), por ele ter levado progresso à região, fazendo que as tribos prosperarem, em qualidade de vida e comércio.
Os próprios indígenas foram contratados como figurantes do filme, uma produção com quase 300 pessoas, entre técnicos e artistas, que movimentou a região por alguns meses naquele ano que antecedeu o lançamento do filme. O longa, aliás, é um marco para a região, afinal foi o primeiro filmado por lá, se tornando uma espécie de ícone dos filmes de faroeste.
A história você já sabe: indígenas selvagens e bárbaros invadem o rancho de uma família, matam pai, mãe e filho e sequestram as duas moças da casa, uma delas com apenas oito anos. O tio das crianças, o soldado Ethan Edwards (John Wayne), e o filho adotivo do casal, o mestiço Martin Pawley (Jeffrey Hunter), que encontravam-se ausentes durante a invasão, saem ao encalço do paradeiro das meninas, uma jornada que leva exaustivos anos até que surja a primeira pista. É um drama forte, com muita ação.
Entusiastas e estudiosos do filme, os renomados cineastas Martin Scorsese, Curtis Hanson e John Millus não cansam de dizer, em um documentário que é uma verdadeira aula de cinema, presente no material extra, que até hoje, 65 anos depois, ninguém nunca filmou tão bem a paisagem arenosa do Monument Valley. Aliás, as concepções fotográficas do filme são extraordinárias, cortesia da tecnologia que Ford escolheu para o projeto, a então recém-lançada VistaVision – segundo Scorsese, o modelo dos sonhos de qualquer cineasta que deseje ter muita profundidade de campo com excelente qualidade.
O enredo pode ser simples – afinal, se resume a um resgate, com muitos indígenas, tiroteio, cavalos etc. – mas os personagens são complexos e há nuances que tornam a trama muito mais rica como, por exemplo, a religiosidade, algo bastante presente nos filmes do diretor irlandês, mas nem sempre de maneira devota.
Ethan, por exemplo, é um soldado de meia-idade, branco, em crise com uma série de crenças, inclusive com sua própria raça, uma vez que fica subentendido que, assim como as sobrinhas, ele fora capturado por indígenas. E isso tem vários desdobramentos, como sua descrença em Deus e a relação ambígua com Martin, ora de puro racismo, ora de um paternalismo quase tocante.
Além do mais, Rastros de Ódio é um filme de uma violência extrema, que nunca é mostrada na tela: o diretor deixa apenas o gatilho para que o espectador vivencie, apenas na mente, os horrores que aquela família passou nas mãos dos selvagens, um recurso poderoso até os dias de hoje, e um dos fatores que tem ajudado o filme a não envelhecer um dia sequer, mesmo depois de seis décadas de seu lançamento.
Agora me dê licença, afinal Ford Essencial ainda traz No Tempo das Diligências, O Homem Que Matou o Facínora e Paixão dos Fortes – junto ao Rastros de Ódio, formam a quintessência dos faroestes de Ford e, certamente, do cinema – e, para além dos filmes, promete certa de sete horas de material extra sobre os filmes e, por consequência, sobre a carreira de um dos maiores diretores de todos os tempos.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 16 de março de 2021.