Não haveria dia mais propício para ver Soul que um sábado à noite, entre o Natal e o Ano Novo, em um ano assolado por uma severa pandemia. Afinal, a mais nova produção da Pixar, estúdio responsável por algumas das animações mais sensíveis e inteligentes dos últimos tempos, é uma bela reflexão sobre o propósito de todos nós na Terra, coisa que o enredo faz de maneira soberba.
Disponível desde o dia 25 através do Disney + (por conta da covid-19, a companhia preferiu abrir mão dos cinemas e lançá-lo somente no serviço de streaming), Soul (“alma”, em português) narra a história de um aspirante a músico de jazz do primeiro time que, no dia que tem sua grande chance, morre, mas se recusa a ir para o céu, procurando uma maneira de voltar ao mundo dos vivos e concretizar seu grande sonho.
No limbo, encontra o “setor” (vamos chamar assim) que despacha as novas almas para a Terra e é confundido com um tutor dessas pequenas alminhas. Lá, vê sua chance de voltar à Terra quando encontra uma alma que insiste em não querer ter uma vida terrena.
No limbo, encontra o “setor” (vamos chamar assim) que despacha as novas almas para a Terra e é confundido com um tutor dessas pequenas alminhas. Lá, vê sua chance de voltar à Terra quando encontra uma alma que insiste em não querer ter uma vida terrena.
A temática nem é nova. A Pixar abordou a morte (sob o prisma mexicano) em Viva - A Vida é uma Festa (2017) e a narrativa lembra bastante Divertidamente (2015), tanto na maneira como apresenta os personagens até a forma como a jornada dos heróis vai apresentar lições valiosas para as crianças (e, eventualmente, arrancar lágrimas de adultos sensíveis).
Mas dentro de um contexto de fim de ano, e de um ano muito difícil, emocionalmente falando, em virtude do coronavírus, Soul ganha uma outra luz daquela imaginada pelo diretor Pete Docter e sua equipe. Acredito que muita gente vá se sentir bem próximo a Joe, o aspirante a músico que insiste em não partir desta vida sem, antes, deixar seu legado.
E os medos do novo, traduzido nas falas e ações da 22, a alminha que é a missão do músico, são muito pertinentes às crianças. É nessa balança que a Pixar encontra o equilíbrio perfeito para entregar uma história cativante para ambos os públicos.
Esteticamente, a Pixar, além da excelência 3D que vem construindo a partir de textura, luz e sombras, experimentar outros formatos de animação, a exemplo Homem-Aranha no Aranhaverso (2018), inclusive trazendo para Soul o conceito de cubismo 2D aplicado em Divertidamente.
Embora a música seja a desculpa, e não o centro da história, é bom que se diga que a trilha sonora é ampla. O jazz – composto pelo habilidoso pianista Jon Baptiste – é de primeira linha, assim como a abordagem do gênero. Em seu primeiro longa de animação para a Pixar, Pete Docter já deixava clara sua paixão pelo jazz ao emplacar o ritmo logo na abertura de Monstros S.A. (2001).
Mas aqui ele vai além: o jazz, orgânico, vivo, serve ao mundo dos vivos, ao passo que uma música eletrônica, etérea, embala o mundo da “Escola das Almas”, como chama o diretor. Essa parte é assinada por Trent Reznor, que após uma bem-sucedida carreira no rock (através do Nine Inch Nails), abraçou as trilhas para cinema com tanta paixão que chegou a levar um Oscar pela música de A Rede Social (2010).
Particularmente, fiquei tocado em dois momentos: uma breve execução de ‘Subterranean homesick blues’, de Bob Dylan, e no momento em que os personagens topam com um músico de rua no metrô de Nova York. Aquele ali é Cody ChesnuTT, que conheci há quase 20 anos, quando ele lançou um dos grandes marcos do soul lo-fi, infelizmente pouco conhecido: ‘The Headphone Masterpiece’ (2002), um CD duplo que mantenho na coleção com carinho até os dias de hoje.
No longa da Pixar, ele canta a bela 'Parting ways', que você pode ouvir através do QR Code desta página. Mas convido o leitor(a) a ir além, e procurar a música dele nos serviços de streaming. Há muito "soul" também ali.
*coluna publicada originalmente na edição impressa de 29 de dezembro de 2020.