Renomado ator de teatro e de cinema, estrela de filmes de Billy Wilder (Testemunha de Acusação), William Dieterle (O Corcunda de Notre Dame) e Frank Lloyd (O Grande Motim), Charles Laughton arriscou-se na direção em 1955. Aos 56 anos de idade, ele deu ao mundo uma joia do cinema de terror, O Mensageiro do Diabo, ou The Night of the Hunter no original (“a noite do caçador”, em tradução livre), nome do livro em que se baseia, lançado dois anos antes pelo romancista Davis Grubb.
O filme sobre um falso pastor — muito lembrado por ter tatuado as palavras “love” (amor) e “hate” (ódio) nos dedos de cada mão — que sai pelos rincões da América pós-Guerra procurando viúvas para aplicar-lhes golpes, até dar de cara com duas corajosas crianças que vão se opor às ganâncias do diabólico religioso (vivido por Robert Mitchum), foi um fracasso em sua estreia, e Charles Laughton ficou tão decepcionado que doou tudo que havia filmado para que alunos de uma escola de cinema pudessem recortar e reaproveitar os fotogramas nas aulas práticas — sorte que o material foi salvo por um professor que viu a excelência do material e o filme pode ter, enfim, seu reconhecimento a posteriori.
Lembrei de O Mensageiro do Diabo quando vi A Garota da Agulha, filme dinamarquês que concorre com Ainda Estou Aqui, Emília Pérez, Flow e A Semente do Fruto Sagrado pelo Oscar de Melhor Filme Internacional deste ano e que pode ser visto pela plataforma Mubi. A indicação ao Oscar por si só mostra que, ao contrário do filme de Laughton, a obra de Magnus von Horn já tem um reconhecimento em sua estreia, mas deveria ter mais.
Filme para estômagos fortes, A Garota da Agulha, de largada, deveria ter tido o reconhecimento da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas também pela esplêndida fotografia em branco e preto (a cargo do jovem e premiado Michal Dymek, de Sweet e EO) e as impressionantes atuações de Vic Carmen Sonne e Trine Dyrholm, a dupla que responde pelo ápice da história, ambientada em Copenhague durante a Primeira Guerra Mundial.
A narrativa começa com o drama de Karoline (Sonne), que acaba de ser despejada porque o aluguel está atrasado. Trabalhadora de uma fábrica que fornece vestuários para soldados irem à luta, ela acaba se envolvendo com o patrão quando este fica sabendo que o marido dela foi dado como desaparecido no front.
O romance entre a operária e o patrão não prospera como Karoline gostaria, um casamento que iria lhe tirar do chão de fábrica para os altos palácios da burguesia. Mas deixa um fruto no ventre da mulher. Quando grávida, Karoline conhece Dagmar (Dyrholm), mulher de meia-idade com uma filha de seis anos e que opera uma espécie de agência de adoção para bebês rejeitados pelas mães. E aí é que o filme começa para valer!
A rigor, A Garota da Agulha não é um terror desses de sustos fáceis e assombrações. Aliás, nem medo provoca, mas sim um desconforto brutal ao descortinar aspectos sombrios e genuinamente repugnantes da mente humana. A missão de Dagmar não é nem um pouco altruísta, mas isso o espectador vai descobrindo aos poucos, à medida que o enredo vai nos preparando para um ápice chocante, um verdadeiro soco no estômago. Ou, como postou no Instagram minha vizinha de página aqui em A União, Ana Adelaide Peixoto, “os escombros subjetivos que ultrapassam todo e qualquer bombardeio”.
As expressões e maneirismos de Vic Carmen Sonne é uma porta de entrada para o horror incrustado na trama, muitas vezes disfarçado de metáfora sobre dores e dissabores da maternidade, sobretudo nos tempos solitários da guerra, e que passa, também, pelo papel “esposa-que-é-mãe”, quando o marido reaparece, mutilado tanto física quanto mentalmente. Os horrores, portanto, aparecem de diversas maneiras e estão todos conectados. É um filme duro, mas uma reflexão necessária a todos os povos.
O Oscar tem tido um olhar mais atento às produções estrangeiras. Para além da indicação de Melhor Filme Internacionais, o brasileiro Ainda Estou Aqui concorre em outras duas categorias e o francês falado em espanhol Emilia Pérez, em outras seis, sem falar de Flow, cotado para levar o Oscar de Melhor Animação. No ano passado, Zona de Interesse, todo falado em alemão, e o francês Anatomia de uma Queda receberam cinco indicações, cada um, incluindo Melhor Filme, e acabaram sendo mundialmente celebrados. Holofote que faltou ao dinamarquês A Garota da Agulha, e nisso o Oscar poderia ter ajudado ainda mais.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 18 de fevereiro de 2025.