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“Coringa – Delírio a Dois” não tem Coringa

publicado: 08/10/2024 08h56, última modificação: 08/10/2024 08h56
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Lady Gaga e Joaquin Phoenix vivem romance que vira musical no novo filme | Foto: Divulgação/Warner

por André Cananéa*

Em cartaz há quase uma semana, Coringa — Delírio a Dois tem feito barulho nas redes sociais. E boa parte dessa “zoada” diz respeito à reprovação, por parte de uma boa parcela do público, da sequência de Coringa (2019), ambos dirigidos por Todd Phillips. Uma passada pelas redes sociais e o leitor lerá todo tipo de informação a respeito do Coringa “2”, incluindo opiniões equivocadas de quem busca no filme algo que ele não é: mero entretenimento de ação.

Vi Delírio a Dois na pré-estreia da quarta-feira passada, acompanhando uma ação da Parahyba 103.9 FM em parceria com o Centerplex Cinemas. Entre colegas e convidados, assisti à nova — e radical — proposta de Phillips, um musical que se afasta ainda mais da ideia popular que se tem do arqui-inimigo do Batman. Afinal, o primeiro Coringa, apesar dos dois pés no universo do vilão, também não é um filme de ação, mas um drama.

O cineasta James Gunn, hoje um dos responsáveis pela DC Studios, divisão da Warner Bros. voltada ao mundo dos super-heróis de quadrinhos, se apressou em dizer que Coringa – Delírio a Dois não integra o universo cinematográfico da DC, mas admitiu que isso pode estar confundindo a cabeça do público, como de fato está.

Está todo mundo colocando Coringa — Delírio a Dois no balaio dos filmes de quadrinhos — até o marketing da Warner Bros.! “Qual o seu coringa preferido?”, cansei de ler nas redes sociais. Mas Delírio a Dois não é sobre o Coringa (apesar do título), é sobre o Arthur Fleck (Joaquin Phoenix, vencedor do Oscar pelo papel em 2020), o homem doente que matou seis pessoas no primeiro filme, e agora vai a julgamento para saber se não tinha consciência de seus atos, e por isso merece a internação numa clínica, ou se praticou os crimes em sã consciência, o que o faz merecedor da pena de morte.

O homem triste, incapaz até de contar piadas para os carcereiros, acaba indo parar numa aula de canto, onde conhece Lee Quinzel (Lady Gaga) e os dois rapidamente têm um explosivo caso de amor. Aliás, não sei se o leitor que já tenha visto o filme reparou como o amor muda o astral de Arthur Fleck, tão apaixonado que passa a cantar baladas até mesmo quando o julgamento não está favorável a ele.

Então Delírio a Dois é um drama de presídio, julgamento, romance e musical, tudo junto e misturado, com pouquíssima conexão com o universo dos quadrinhos. Fazem Fleck vestir a velha indumentária do Coringa apenas para criar a conexão com o título, mas a personagem de Lady Gaga hora alguma é tratada como Arlequina, o colorido par romântico psicopata do Coringa nas HQs, e quem for ao cinema em busca de vê-la numa vibe Margot Robbie em Esquadrão Suicida, vai quebrar a cara.

O filme é sombrio, sem a ação desenfreada dos filmes de super-herói (restrita ao desenho animado no início do longa, que dá o tom do resto do enredo). Não há sequências icônicas como no primeiro, e não lança nenhuma nova indumentária para quem faz cosplay, mas a desconstrução do personagem, as camadas que estão impregnadas na interpretação de Joaquin Phoenix, e o repertório fino, repleto de standards de George Gershwin, Burt Bacharach e Billy Joel, fazem a experiência valer muito à pena — sobretudo para quem não se deixa levar por notas do Rotten Tomatoes e afins.

O filme também coloca seus protagonistas para desfilarem clássicos conhecidos nas vozes de Frank Sinatra (“Bewitched”, “Fly me to the moon”, “That’s life”), Stevie Wonder (“For once in my life”), Louis Armstrong (“When the saints marching on”) e Fred Astaire (“That’s entertainment” — se você é cinéfilo, vai lembrar de A Roda da Fortuna, de 1953).

Destaque para “What the world needs now is love”, na voz de Nick Cave, que embala o trailer do filme, e a valsa “Folie à deux”, composta e interpretada por Lady Gaga, e que pode render à cantora uma indicação ao Oscar de melhor canção no ano que vem.

Coringa – Delírio a Dois tem lá seus defeitos, sobretudo o roteiro preguiçoso, mas não é merecedor do achincalhamento que o público tem feito com o filme. Acredito que o tempo vai mostrar o valor dessa desconstrução bizarra e poética, voltada a espíritos sensíveis e com maturidade cinematográfica.

*Artigo publicado originalmente na edição impressa do dia 08 de outubro de 2024.