por André Cananéa*
Assim como Transa, de Caetano Veloso, Expresso 2222, de Gilberto Gil, é filho da lição do exílio em Londres, como atesta o próprio Gil na letra de ‘Back in Bahia’: “...como se ter ido fosse necessário para voltar”. Ambos os discos estão completando 50 anos agora em 2022, e integram uma trinca de obras-primas que festejam bodas de ouro e que eu fecho hoje, com o disco de Gil, após ter publicado minhas impressões sobre Clube da Esquina e o citado Transa.
Ao contrário do mano Caetano, que gravou seu célebre álbum ainda em Londres, no transcurso de 1971, para lançá-lo 1972, Gil entrou em estúdio para colocar seu Expresso 2222 em movimento após chegar ao Brasil, em janeiro de 1972. Não só reencontrou o país, os amigos e sua cultura, como mergulhou no mesmo Brasil profundo que Caetano havia mergulhado ao conceber Transa.
Lançado em julho de 1972 e estampando a foto de Pedro, filho de Gil, aos 2 anos de idade na capa, Expresso 2222 foi maturado a partir de fevereiro, quando o baiano empreendeu uma longa excursão, viajando “cinco mil quilômetros de Nordeste, no Volks bordô de Capinan” (como atestado no livro Gilberto Gil Bem de Perto, dele com Regina Zappa), começando pelo Carnaval, em casa, ao lado de Tuti Moreno (bateria), Antônio “Perna” (piano), Bruce Henry (baixo) e Lany Gordin (guitarra), o magistral quarteto que acabou por acompanhar Gil no álbum.
Essa viagem pelo Nordeste, capitais e interior, rendeu uma pesquisa de campo junto a cirandeiros, cantadores, repentistas e demais expressões da cultura popular, tudo registrado em um gravador cedido pela Philips. Aí está a base de um LP de leque variado, que abre com uma orgânica versão para ‘Pipoca moderna’, de Caetano (em parceria com Sebastiano Biano) executada pela Banda de Pífanos de Caruaru, mas que na faixa seguinte logo diz a que veio, através da autobiográfica ‘Back in Bahia’, meio Chuck Berry, meio Bob Dylan, com destaque para os solos de Lany, o piano envenenado de Perna e a bateria nervosa de Tuti.
O reencontro de Gil com o Nordeste profundo inclui uma passagem pela Paraíba, através de duas músicas eternizadas na voz de Jackson do Pandeiro: ‘O canto da ema’, em versão vigorosa (na qual o baixo de Henry se destaca) e uma roupagem bossanovista para ‘Chiclete com banana’, muito bem executada nas rádios de todo o país. Esse gesto teria um efeito importantíssimo na carreira de Jackson, trazendo o filho de Alagoa Grande de volta aos holofotes.
Em Jackson do Pandeiro - O Rei do Ritmo, Fernando Moura e Antônio Vicente anotam que Jackson foi o cantor que mais influenciou Gil. Portanto, não é por acaso que ‘Chiclete com banana’ passou a ser uma canção frequente nos shows do baiano. Mas há outra reverência/influência que Gil fez questão de registrar: Abdias dos Oito Baixos. É do disco Sai do Sereno, lançado pelo paraibano de Taperoá, que Gil tira a faixa título para cantar com Gal Costa, numa versão frenética do forró lançado em 1966, uma espécie de “forrock” que poderia ter inspirado a banda Raimundos, por exemplo.
Grande sucesso desse disco, a faixa-título ‘Expresso 2222’ talvez seja a melhor síntese da união entre o coração nordestino e a cabeça cosmopolita de Gil, entre o xote e o rock. No supracitado Gilberto Gil Bem de Perto há um texto de Fernanda Torres que diz o seguinte: “A música é um dom natural nele e o violão, uma extensão do seu corpo. O Gil pode não ser o João, não ser Luiz, mas é criador da sensacional batida de abertura de ‘Expresso 2222’, aquela que imita a sanfona, primeiro instrumento dado pelo pai quando Gil ainda era moleque. Esse rock é xote, denuncia o feito”.
As outras três faixas, das nove que o LP original traz, são do próprio Gil: ‘Ele e eu’ (dizem que a letra faz referência às diferenças entre o autor e Caetano), ‘O sonho acabou’ e ‘Oriente’ – essas duas com arranjos solitários da voz e violão do titular do disco – também demonstram bem essa capacidade descrita por Fernanda sobre o dom do baiano para encontrar a batida perfeita do violão e um pulso firme para escrever letras belas e marcantes.
E, a título de curiosidade, uma edição em CD lançada em 1998 veio com três faixas bônus: um dueto de Gil e Caetano para ‘Cada macaco no seu galho’ (de Riachão) e as marchinhas de carnaval ‘Vamos passear no astral’ e ‘Está na cara, está na cura’, ambas de Gil (a primeira, lançada originalmente no LP Carnaval Chegou, de 1972). As duas marchinhas também integram a versão de Expresso 2222 para as plataformas digitais.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 22 de março de 2022.