por André Cananéa*
Dando sequência à trinca de obras-primas brasileiras que celebram Bodas de Ouro em 2022, iniciada aqui na coluna com Clube da Esquina, na semana passada, hoje chegamos à Transa, lançado por Caetano Veloso ainda no exílio, em Londres. Foi o segundo LP gravado pelo tropicalista na Inglaterra, ambos sob a produção do músico Ralph Mace, que integrou a banda de David Bowie (anos depois, Caetano admitiu que chegou a esnobar uma possível parceria com o autor de ‘Life on Mars?’) e, graças a Mace, o baiano passou a tocar violão em seus discos (reza a lenda que até então, os produtores só queriam que ele apenas cantasse).
Transa é o primeiro de uma trilogia de LPs com arranjos bastante experimentais – e o melhor entre Araçá Azul, de 1973, e Joia, de 1975. Com sete faixas e canções autorais que evocam o Brasil profundo, em letras que misturam português e inglês, o disco é o resultado do olhar distante e saudoso do Caetano exilado em Londres por força do regime militar que vigorava no Brasil de então.
O disco foi concebido após Caetano conseguir permissão para voltar ao Brasil para o aniversário de casamento dos pais, na Bahia. Nesse breve retorno, foi obrigado a dar entrevistas e participar de programas de TV para “dar a impressão de que estava tudo normal”, como anota o próprio músico no livro Verdades Tropicais.
Mesmo assim, essa visita lhe trouxe boas expectativas. “A vinda ao Brasil, no entanto, tinha me animado de algum modo”, escreveu Caetano em seu livro de memórias. “Apesar do pesadelo do dia da chegada, o mero fato de ter revisto coisas, pessoas e lugares do Brasil conferia ao país uma realidade que a perspectiva do exílio sem retorno já estava diluindo”. E de fato, diluiria… não demorou muito para Caetano (assim como Gil) retornarem em definitivo ao país, em janeiro de 1972, após um contato de João Gilberto.
Mas antes, ainda em Londres, Caetano conseguiu arregimentar um timaço para gravar seu aclamado Transa: Jards Macalé, Áureo Souza e Tuti Moreno. “Minha ideia era fazer um grupo que tocasse a partir do meu próprio modo de tocar violão”, explicou. “Escrevi para a Bahia chamando Moacir Albuquerque, o belo e talentoso irmão de Perinho (que chegou a integrar o grupo Raulzito e Seus Panteras e a trabalhar com Caetano e Gal no início da carreira de ambos), para trazer ‘um contrabaixo baiano’ para a minha banda. Ele também aceitou. Daí é que nasceu Transa, um dos meus discos preferidos”.
Macalé assumiu a direção musical do trabalho e o resultado são canções memoráveis, como ‘You don’t know me’, com direito a citações de ‘Maria Moita’, de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes; ‘Reza’, de Edu Lobo e Ruy Guerra e ‘A hora do adeus’, de Luiz Queiroga e Onildo Almeida, famosa na voz de Luiz Gonzaga.
O repertório ainda conta com ‘Nine out of ten’, que até hoje é lembrada pelo autor em seus shows; ‘Triste Bahia’ é outra prova cabal da conexão de Caetano com o Brasil profundo, afinal trata-se de um poema do conterrâneo baiano Gregório de Mattos lançado no século 17, além da releitura para ‘Mora na filosofia’, célebre canção de Monsueto, em parceria com Arnaldo Passos, e lançada originalmente na voz da cantora Marlene. Fecham o repertório ‘It’s a long way’, faixa em que Os Beatles encontram a Bahia, com direito a trechos de músicas de Dorival Caymmi (‘Lendas do Abaeté’) e Baden Powell e Vinícius de Moraes (‘Consolação’), ‘Neolithic man’ e ‘Nostalgia (That’s what rock’n’roll is all about)’, esta com a participação da comadre Gal Costa e da futura Angela Ro Ro.
De onde estou, sempre enxerguei que aquele LP de 1972 – lançado três anos antes de eu nascer – nunca seria possível se Caetano Velosos não fosse forçado a sair do país, sem o olhar do artista “de fora” do Brasil, movido a saudade e na condição de exilado. O resultado é um disco sofisticado e, ao mesmo tempo, raiz, cosmopolita em seu inglês londrino, mas extremamente brasileiro, com as constantes citações ao cancioneiro de Monsueto, Lyra, Lobo, Gonzagão, Caymmi, Baden e Vinícius, e ainda Zé do Norte (em ‘It’s a long way’). Características que comprovam que, 50 anos depois, Transa permanece atemporal.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 15 de março de 2022.