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A emoção vem do passado

publicado: 06/02/2024 13h01, última modificação: 06/02/2024 13h01
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Na cerimônia, Joni Mitchell, no alto dos seus 80 anos, cantou ‘Both sides now’ - Foto: grammy.com

por André Cananéa*

Há 66 anos, o Grammy Awards entrega prêmios para os melhores trabalhos lançados pela indústria fonográfica no ano anterior. Os critérios para a distribuição desses prêmios são questionáveis. Afinal, será mesmo que os EUA (o prêmio só olha para seu próprio umbigo) não lançou um disco melhor que Midnights, de Taylor Swift?

Do ponto de vista técnico, The Age Of Pleasure, de Janelle Monáe, não seria melhor? E será que a música pop está mesmo bem representada entre os oito indicados ao prêmio? A saber: World Music Radio (Jon Batiste); The record (Boygenius); Endless Summer Vacation (Miley Cyrus); Did You Know That There’s A Tunnel Under Ocean Blvd (Lana Del Rey); GUTS (Olivia Rodrigo) ou SOS (SZA), além dos dois já citados?

Há fortes acusações de racismo. O cantor Jay-Z, marido de Beyoncé, a maior estrela desta geração, aproveitou seu momento em frente aos microfones para questionar o motivo de sua esposa já ter levado quase todos os prêmios do Grammy, menos o principal: Álbum do Ano! “Eu simplesmente não entendo”, disparou. Já Taylor Swift, branca de pai e mãe, saiu da premiação, na noite de domingo (dia 4), com o recorde de artista com mais prêmios na categoria principal: quatro. Eu também não entendo, Jay-Z. Ou será que entendemos bem?

Mas não é disso que eu quero falar. A imprensa “moderna”, o TikTok e o Instagram não cansam de jogar confetes e serpentinas em cima das estrelas premiadas: Taylor Swift, Miley Cyrus (Gravação do Ano e Melhor Performance Solo Pop), Billie Eilish (Música do Ano), Karol G (Melhor Álbum de Música Urbana, categoria chinfrim voltado à música latina, com apenas três indicados), SZA (Melhor canção de R&B) etc., etc., etc… pouco vi sobre o que eu acho que realmente importa: os momentos de pura emoção protagonizados por gente que a novíssima geração mal saiba que existia (penso eu).

Cai de joelhos quando vi a surpresa que a premiação fez ao colocar no palco de Luke Combs a autora de ‘Fast car’, que ele apresentou na primeira hora do Grammy: Tracy Chapman! Prestes a completar 60 anos em março e ainda com a voz de estreante, ela subiu ao palco sob uma ovação gigantesca e fez gente como Taylor Swift cantar junto a letra de uma canção que fez história em 1988, quando a artista premiada da noite sequer havia nascido (Swift é de 1989).

Tracy Chapman foi só um dos pontos altos da noite. Stevie Wonder, que tem nada menos que 25 prêmios Emmy na estante, conduziu uma bela homenagem a Tony Bennett. O dueto virtual com o cantor, morto em julho do ano passado, foi o início das homenagens aos artistas que se foram ao longo de 2023 (incluindo Rita Lee). Mais na frente, Annie Lennox lembrou Sinéad O’Connor (que também partiu em julho) em uma interpretação emocionada de ‘Nothing compares 2 U’, música de Prince que lançou a cantora irlandesa ao estrelato.

Falando na Irlanda, o U2 marcou presença promovendo sua temporada no Sphere, a grande esfera hi-tech erguida em Las Vegas e onde o grupo se apresenta desde 26 de setembro. O anfitrião do Grammy tratou de anunciar que aquela era a primeira vez que câmeras profissionais registravam a apresentação do U2 na Sphere e além de Bono, The Edge e Adam Clayton, é possível ver nitidamente Bram van den Berg (da banda Krezip) na bateria, substituindo o titular Larry Mullen Jr., afastado para tratamento de saúde.

Mas nada foi mais emocionante do que ver Joni Mitchell, ali, entronizada com seu cajado (uma bengala, na verdade), do alto de seus 80 anos, cantando a extraordinária ‘Both sides now’, gravada por ela no álbum Clouds (1969), depois de ser lançada na voz de Judy Collins (o comentarista do HBO Max erroneamente falou que a música é do álbum Blue).

‘Both sides now’, regravada pela própria Joni Mitchell em 2000 para o disco que leva o nome da canção (o mesmo que aparece em cena marcante do filme Simplesmente Amor e que venceu o Grammy de 2001), é de uma delicadeza e, na interpretação correta, como a da autora, transmite uma emoção descomunal.

Após 20 anos sem se apresentar ao vivo, a performance da “matriarca da imaginação”, como foi saudada, deixou com olhos marejados colegas mais jovens, como Beyoncé e Dua Lipa, além de representar, ali, a inspiração para, praticamente, todas as concorrentes daquela noite. Muito da música de Taylor Swift, por exemplo, vem da influência da musa folk dos anos 1960. E se as novas gerações entendem o significado da comoção gerada pela presença de Joni Mitchell ali, no Grammy 2024, a música pop do futuro poderá ter salvação.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 06 de fevereiro de 2024.