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A musa sem dentes

publicado: 16/07/2024 09h15, última modificação: 16/07/2024 09h15
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Scott Goldberg, diretor de “The Forest Hills”, e a atriz Shelley Duvall, estrela de seu filme | Foto: Reprodução

por André Cananéa*

Na última quinta-feira (11), meu feed no Instagram foi inundado com notícias sobre a morte da atriz Shelley Duvall, aos 75 anos, em decorrência da diabetes. Sigo muitos perfis ligados a cinema e outros tantos vinculados aos grandes portais de notícia do Brasil e do mundo, portanto, quando a informação começou a se espalhar, obviamente todos os perfis começaram a postar a notícia, 95% deles com a clássica foto da atriz no filme de maior repercussão de sua carreira, O Iluminado, de Stanley Kubrick.

O filme é de 1980, portanto, na foto, a atriz está com seus 30 anos. Quando foi contratada para viver Wendy Torrance, a carreira de Shelley Duvall já contava com 10 anos, tinha feito nada menos que seis filmes com Robert Altman (entre eles, o clássico Nashville) e um com Woody Allen (Noivo Neurótico, Noiva Nervosa) e ainda namorava o músico Paul Simon, após um breve relacionamento com Ringo Starr.

No ano de O Iluminado, estrelou outro filme pelo qual é muito lembrada: a versão live action da HQ Popeye (também de Altman), em que ela, no papel de Olivia Palito, dividiu os holofotes com o Popeye Robin Williams. Curiosamente, depois disso, o estrelato nunca mais lhe sorriu, embora seja creditada em mais de 40 produções depois de Popeye, nenhum em papéis tão relevantes quanto nos dois filmes lançados em 1980.

Portanto, entre muitas fotos de Shelley Duvall em O Iluminado, e outras poucas, como Olívia Palito, me chamou atenção uma imagem que não estava em nenhum perfil jornalístico, ou de cinema, mas de um cineasta norte-americano independente conhecido por pouquíssima gente, Scott Goldberg, que se aproximou da atriz quando a convidou para um papel em The Forest Hills, produção independente de terror lançada em 2023.

Na quinta-feira, Goldberg postou uma foto dele ao lado de uma senhora que, para os padrões de hoje, aparenta ter mais de 85 anos, sem os dois dentes da frente e desprovida de qualquer vaidade. Era ela, Shelley Duvall, em nada lembrando a musa de Robert Altman e ex-namorada de músicos famosos, numa subversão distorcida da memória das grandes estrelas de cinema que envelhecem bem, como Elizabeth Taylor.

Na legenda, Scott Goldberg escreveu: “Estou arrasado com a perda de Shelley Duvall. Estar perto dela nos últimos dois anos e ser seu fã nos anos anteriores, isso dói. Sentirei falta de seus telefonemas, e amava enviar mensagens com memes de O Iluminado e votos de feliz aniversário”.

Ao ver a foto, Shelley me lembrou uma Norma Desmond (personagem de Crepúsculo dos Deuses) com cara de moradora de rua. Um colega meu se apressou em desfazer a má impressão: “O diretor postou uma foto da personagem do filme, não dela. Pode dar um Google”. Uma rápida “googlada” e surgem fotos da reclusa e idosa Shelley Duvall com todos os dentes, que comparei rapidamente com uma rara entrevista que ela deu em 2016 — a foto postada por Scott Goldberg supostamente é de 2023, sete anos depois, e, não custa lembrar, diabetes, quando negligenciada, faz os dentes caírem.

Naquela mesma quinta-feira, li um artigo do The New York Times que me deixou ainda mais confuso. Na tradução da Folha de S. Paulo, o texto da jornalista Saskia Solomon lembra os recentes 20 anos que Shelley Duvall se manteve longe das telas, antes de voltar a atuar em The Forest Hill: “Por mais de duas décadas, a carreira de Duvall ficou estagnada. Seu último papel no cinema foi em Um Presente de Deus de 2002, após o qual ela se aposentou por razões que permaneceram um mistério de uma carreira variada”.

O texto, embora desmistifique que os bastidores de O Iluminado afetaram a saúde mental de Durvall e que trace um desenho muito positivo da atriz, lembra que, em 2016, em uma rara aparição na TV, ela acabou se mostrando em “estado de angústia”, conforme o texto: “Estou muito doente. Preciso de ajuda”, disse Duvall ao Dr. Phil, apresentador do programa.

Segundo o The New York Times, o episódio teve uma chamada bastante sensacionalista: “O declínio na doença mental de uma estrela de Hollywood: salvando Shelley Duvall de O Iluminado”. “Com os olhos arregalados, Duvall passou a proferir uma série de declarações bizarras, como afirmar estar recebendo mensagens de Robin Williams, que havia falecido dois anos antes, e falar sobre forças malévolas que estavam querendo lhe fazer mal”, descreveu a repórter.

Pelo sim, pelo não, a imprensa, e os fãs, estavam certos em lembrar da atriz no auge de sua carreira, com fotos de, se não de Olivia Palito, de Wendy Torrance. Que lembremos da musa de Altman assim! Siga em paz, Shelley Duvall.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 16 de julho de 2024.