por André Cananéa*
A onda revival de resgatar canções do passado e apresentá-las a uma nova geração tem ganhado cada vez mais força. Só neste primeiro semestre de 2022, nada menos que três das séries mais populares do streaming foram buscar, no passado, os carros-chefes de suas trilhas sonoras.
Isso sem mencionar o filme Batman, que, ao utilizar uma “faixa B” do célebre Nevermind, disco lançado pelo Nirvana em 1991 – portanto, há mais de 30 anos –, fez a procura pela soturna ‘Something in the way’ aumentar mais de 1.200% no Spotify. Que tipo de impacto teria essa exposição no mercado de discos, antes do surgimento da internet, quando ainda íamos às lojas comprar LPs e CDs?
O fato é que, mais do que o mercado do cinema – cujas salas continuam vendendo ingresso, a despeito da forte concorrência do streaming –, os negócios com músicas mudaram bastante nesses últimos 30 anos. Sem me alongar muito, basta dizer que as gravadoras perderam força, os artistas se tornaram um misto de cantores, empreendedores e influenciadores digitais (tripé que sustenta a carreira de Anitta, por exemplo) e os álbuns, enquanto obras, perderam espaço para as músicas avulsas (ou “singles”, no jargão do mercado).
As rádios também perderam sua capacidade de moldar o gosto popular – fundamental a partir dos anos 1950, quando o mercado de discos se estabeleceu, até meados dos anos 1990 – e o consumo de música, por tudo isso, se tornou mais disperso e individualizado, sobretudo quando os celulares encontraram os fones de ouvido e passaram a viver uma eterna lua de mel.
Então hoje é difícil – sobretudo na América, de onde vem as produções audiovisuais mais consumidas – encontrar uma canção nova com apelo emocional suficiente para marcar uma história. Falta qualidade? Falta audiência? O que falta para surgir “a” canção que comova, emocione ou, ainda, se encaixe com perfeição ao enredo, como é o caso de ‘Running up that hill’, que a cantora britânica Kate Bush lançou em 1985.
‘Running up that hill’ integra um momento chave da quarta temporada de Stranger Things, um dos grandes sucessos da temporada no streaming. A exposição levou o clássico ao segundo lugar na lista Top 50 do Spotify nos EUA e chegou ao quarto lugar no Top 200 mundial após a estreia da primeira parte da temporada no dia 27 de maio.
Em 1985, ‘Running up that hill’ (cujo título original seria ‘Deal with God’, ou “Negociando com Deus”, em tradução livre, se a gravadora não o tivesse barrado) foi um estouro! Resgatou a carreira de Kate Bush do limbo e catapultou a artista de volta às paradas de sucesso de ambos os lados do Atlântico, além de ter gerado um sem-número de regravações. A letra fala sobre um rapaz trocando de lugar com uma garota, para que um tente entender o sentimento um do outro.
Outra série que também se vale de clássicos é o divertido Pacificador, aqui com um foco bem diferente: tanto a produção, quanto o enredo, se agarram a um nicho, que é o hard rock dos anos 1980. Ao contrário de Stranger Things, que se passa naquela década, Pacificador tem sua história ambientada em um mundo mais contemporâneo, mas seus personagens amam o chamado “hair metal”, vertente tida pelos roqueiros mais ortodoxos como “metal farofa”, com muita pose, figurino esbanjador e, até, laquê demais nos cabelos, e que fez muito sucesso ao longo da década de 1980.
Então tanto o roteiro (que rende ótimas piadas sobre o tema), quanto a trilha sonora de Pacificador, viajam quatro décadas atrás para resgatar pérolas de bandas The Quireboys, Firehouse, Lita Ford, Mötley Crüe e Santa Cruz, entre tantas outras. E embora os noruegueses do Wig Wam só viessem a ter uma carreira no século 21, coube a eles a honra de ter uma canção na abertura da série, “Do Ya Wanna Taste It?”, que faz jus à farofa e ao glitter da geração oitentista (ouça abaixo).
Super-herói menos conhecido da Marvel, Cavaleiro da Lua também se valeu de uma canção antiga, mas igualmente obscura, para compor sua trilha: ‘A man without love’, lançada por Engelbert Humperdinck em 1968, alcançando o segundo lugar nas paradas inglesas daquele ano. Versão em inglês para a italiana ‘Quando m’innamoro’, foi a que menos teve reverberação entre o público na internet, mas não deixe de notar: Cavaleiro… reúne muitos biscoitos finos, como ‘Every grain of sand’ (Bob Dylan), ‘My way of life’ (Frank Sinatra) e ‘Bela Lugosi’s dead’ (Bauhaus).
Então, relaxe e aproveite a viagem sonora através do tempo. Afinal, como dizem os nostálgicos – e a indústria audiovisual atesta –, antigamente é que era melhor!
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 14 de junho de 2022.