Um dos melhores filmes de terror dos últimos anos, Fale Comigo, reflete os cruéis tempos modernos, nos quais o pior monstro não tem dentes afiados, nem poderes sobrenaturais, mas são bem reais e presentes: a insensibilidade humana. Os irmãos Danny e Michael Philippou, diretores do filme australiano exibido recentemente nos cinemas, não cansam de dizer que o enredo critica o estupor de muitos jovens que, imersos em seus Smartphones, são despertados apenas quando algo chacoalha o andamento normal do cotidiano, mas se essa “perturbação” for um acidente grave, ou uma situação de risco, são incapazes de acudir a vítima, porém não titubeiam em registrar a cena para seus perfis na internet, tendo em vista o acesso que a postagem irá gerar.
Ah, mas o filme é ficção, história da carochinha… Será? Em 2019, um helicóptero que transportava o jornalista Ricardo Boechat caiu na Rodovia Anhanguera (São Paulo), condenando o então âncora da Band News FM à morte. Ao cair, o helicóptero atingiu um caminhão, cujo motorista ficou preso nas ferragens. Enquanto dezenas de curiosos sacavam seus celulares para registrar o trágico acidente, uma mulher, Leilane, sozinha, correu para salvar a vida de João Adroaldo Tomackeves, segundo relatos da imprensa. A destemida heroína ficou conhecida como “Mulher-Maravilha”.
Lançado com estardalhaço na última sexta-feira (29), a série Gen V, do Prime Video, envereda por essa falta de empatia, mas é um subtexto que pouca gente se dignou a registrar nas redes sociais, como gostam de fazer os “influenciadores” do streaming. Eu, pelo menos, não li/vi ninguém que tenha abordado esse aspecto. Uma rápida busca no Google, e só falam que Gen V é um derivado do blockbuster The Boys, muita gente elogia, outros tantos reclamam que a série não reflete a história dos quadrinhos (assim como The Boys, Gen V também é baseado em HQ) etc., etc., etc., mas ninguém fala das críticas à obsessão juvenil pelos cliques em rede social que os três primeiros episódios escancaram na tela (os demais episódios serão lançados semanalmente, a partir desta sexta-feira).
Aqui cabe um contexto: escrita por Garth Ennis para uma série de histórias em quadrinhos, The Boys subverte o universo dos super-heróis ao mostrar uma corporação de heróis com superpoderes e nenhum escrúpulo, integrada a uma megacorporação que, entre outras atribuições, explora a imagem de seus heróis através de contratos milionários de merchandising e marketing. Ou seja, é o oposto das virtudes professadas pela Liga da Justiça (formada por Batman, Super-Homem, Mulher-Maravilha, Aquaman etc.).
A versão audiovisual da história em quadrinhos mantém a pegada mau-caráter dos protagonistas, reforçada com muito sangue, sexo e um tal de “Composto V” que, ao longo da história, ficamos sabendo se tratar de uma fórmula que, injetada em bebês, transformando-os em seres poderosos a partir da puberdade. É essa fatia que move o derivado Gen V.
No novo seriado, a idade dos protagonistas diminui em relação a The Boys. A história foca em um grupo de estudantes que ingressa em uma escola especial para quem tem superpoderes, mas o grupo almeja mesmo é chegar até a Escola de Combate ao Crime, onde recebe o título de super-herói. Mas, claro, nem tudo é o que parece ser, e Gen V oferece mais sangue, vísceras e sexo (o seriado é recomendado para maiores de 18 anos), enquanto um time de protagonistas bem intencionados tem que lidar com as picaretices da instituição a qual estão vinculados.
É nesse ambiente juvenil que surgem os caça-cliques. Em determinado momento, há uma morte, seguida por uma comoção no campus. Vimos uma mulher-elástico fazer um vídeo dela mesma se acabando de chorar, mas assim que desliga a câmera, a fisionomia muda, as lágrimas secam e a empatia some, como que por mágica.
Em uma das tramas paralelas, uma aluna se aproxima de uma colega que, para ativar seu super poder (o de encolher até o tamanho de uma formiga), precisa vomitar. A colega, que se faz de confidente, vende a outra em suas redes como um caso de bulimia, com a finalidade de arregimentar notoriedade nas redes sociais, e consegue. Com outra colega, ensaia fotos sensuais para “bombar” na internet.
Gen V, com seu enredo voltado ao público jovem e oscilando entre virtudes e desvirtudes, talvez seja eficaz na problematização dessa falta de empatia, embora não seja o mote do enredo. Mas é importante estarmos atentos e fortes, e trazer mais empatia ao mundo real, mesmo que tendo a fantasia como norte para dirimir a crescente insensibilidade que nos alcança nestes tempos modernos.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 3 de outubro de 2023.