por André Cananéa
Peço licença à colega Gi Ismael para abordar um assunto que ela conhece com muito mais cátedra: jogos de videogame. Minha geração – crianças dos anos 1980 – foi uma das primeiras a ter o tal game em casa, Atari ou Odyssey, o primeiro muito mais popular. No Brasil de João Figueiredo, o “genérico” da Atari, o Supergame, fabricado pela extinta CCE, era o que cabia no nosso orçamento doméstico.
Então, basicamente eu curti aqueles jogos de oito bits que hoje são clássicos e vistos como “vintage” pela garotada: Pac-man, River Raid, Enduro... um pouco mais tarde, aderi aos tais “jogos de computador”, através de um MSX fabricado pela Gradiente (outro produto nacional), com gráficos e enredos um pouco mais elaborados. Vale lembrar que esta é uma era anterior ao boom de produtos importados que inundaram o mercado a partir dos anos 1990, trazendo ao país os PCs que conhecemos hoje e, com eles, tecnologia muito mais sofisticada.
Todo esse preâmbulo é para advertir ao leitor que, depois dessa fase, não acompanhei mais os games. Pelo menos até agora, quando meu filho, com 11 anos, abraçou os jogos eletrônicos e, por tabela, passou a me “dar aulas” sobre esse admirável mundo novo, muito mais arrojado graficamente, e deveras mais realista.
Partimos do “come-come”, como chamávamos o Pac-man, para chegarmos a complexos jogos de imersão por realidade virtual, com narrativas que colocam o jogador, por exemplo, dentro do desembarque da Normandia na Segunda Guerra Mundial, com um nível tão alto de detalhes que até o som do ferrolho de cada arma foi cuidadosamente trabalhado para soar tais quais as utilizadas nos anos 1940.
Essas lembranças vieram à tona quando vi, recentemente, Free Guy - Assumindo o Controle, comédia de ação disponível na plataforma Star+, repleta de efeitos caprichados que lhe valeram uma indicação ao Oscar nessa categoria. O filme estrelado por Ryan Reynolds (Deadpool, Alerta Vermelho) é uma divertida reflexão a respeito dos chamados “jogos de mundo aberto”.
Fortnite, GTA e até Minecraft são jogos de mundo aberto, ou seja, dão total liberdade ao jogador para fazer o que bem entender. Para que o player não fique entediado, há missões que podem ser executadas, gerando recompensas e pontuações. São objetivos como levar uma encomenda a alguém do outro lado da cidade, até uma espécie de “barra-bandeira” virtual, em que o jogador se alinha a um time para derrotar o grupo oponente.
Free Guy, que é repleto de referências a jogos desse mundo, sem se basear somente em um, narra a história de Guy, um personagem secundário desse universo. Essa turma, no jargão dos games, é chamada de NPC, ou “personagem não jogável”. Estão ali apenas para fazerem figuração, dar uma dica ao jogador ou, em casos extremos, para apanharem ou serem roubados.
O personagem de Reynolds é um NPC que adquire a consciência de que pode ir além da rotina de coadjuvante que segue toda vez que um jogador acesso o jogo. Essa descoberta se dá quando ele encontra um óculos (olha a metáfora aí, gente!), dando um “bug” no game e balançando as estruturas de um mercado que, na vida real, deve faturar coisa de 200 bilhões de dólares até o ano que vem, segundo a Forbes.
Tron, de 1982; Pixels, de 2015 (que celebra justamente os videogames que fizeram minha infância) e Jogador Nº 1, de 2018, são filmes que mergulham no tema. Mas Free Guy, do diretor Shawn Levy, responsável pela trilogia Uma Noite no Museu, Gigantes de Aço (sobre a interação entre humanos e robôs) e a refilmagem de A Pantera Cor de Rosa, consegue ir um pouco mais longe que os similares.
Aqui, em meio ao enredo escapista e ao entretenimento sem compromisso, ele nos faz refletir sobre a condição passiva dos tempos de hoje. O torpor que nos leva a uma vida cotidianamente programada, sem iniciativa, como um figurante de um jogo de ação, que está ali somente para estar, não existir. É uma reflexão que o frisson dos jogos de ação não tem espaço, mas o cinema permite, mesmo debaixo de pixels e pixels de efeitos especiais.