Muita gente me perguntou, semana passada, qual o grande significado de Parasita ter levado quatro estatuetas no último Oscar: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Original e Melhor Filme Internacional. São muitos os significados, na verdade. Primeiro, é, sem medo de errar, o melhor entre os filmes que venceram na categoria principal nos últimos 10 anos. É mais cinema que Green Book, o vencedor do ano passado? Pode apostar que sim! Numa minuciosa análise técnica, bate até o grande 12 Anos de Escravidão, cuja direção, na minha humilde opinião, se sobressai ao conjunto da obra (ele acabou levando Melhor Filme, mas Melhor Direção, naquele ano de 2014, foi para Alfonso Cuarón, por Gravidade).
Segundo, é o filme que bate no peito e diz: eu quebrei uma hegemonia de quase 100 anos! Quando a gente pára para pensar que Parasita foi o primeiro filme de língua não inglesa a levar o mais cobiçado prêmio da noite, a gente pensa nas obras-primas de Truffaut, Fellini e Kurosawa que deixaram de fazê-lo, não por serem inferiores a Parasita, mas porque a Academia de Arte Cinematográficas de Hollywood sempre se orgulhou de ser “de Hoolywood”, um clube fechado no qual filmes que não falam inglês não entram, ou entravam, pois agora entram.
Mas o maior significado do prêmio talvez seja mesmo o de ter feito o mundo se voltar ao cinema sul-coreano, um celeiro de arte, criatividade e superação de obstáculos que até a chegada de Parasita e suas dezenas de prêmios, pouca gente tinha ouvido falar. Afinal, não é de agora que a Coréia do Sul faz filmes. O início da produção local remete a primeira metade do século passado e alcançou sua época de ouro nos anos 1950. No início dos anos 1960, o país mergulhou em uma ditadura que passou a olhar a arte, de forma geral, como algo subversivo (como todos os regimes totalitários, aliás).
Somente com a reabertura democrática, nos anos 1980, é que a Coréia do Sul voltou a produzir filmes. Mas o país foi além disso: o governo passou a subsidiar a produção cinematográfica e a incentivar o estudo da sétima arte, incluindo-a na grade curricular da escola. Ou seja, pensar cinema se tornou parte da educação daquele país, e assim tem sido há cerca de 40 anos.
Figuras como Bong Joon Ho, diretor de Parasita, Chan Wook Park, famoso por obras como Oldboy, Sang-ho Yeon, de Expresso Zumbi, e Chang-dong Lee (do ótimo Em Chamas), se beneficiaram dessa abertura. Eram garotos que estudaram cinema na escola e nunca mais pararam.
Joon Ho, como muitos sites estrangeiros noticiaram, é um estudioso do cinema mundial. Em entrevista ao jornal O Globo, resgatada a luz da premiação do último dia 9, ele confessa ser admirador do cinema de Glauber Rocha (notadamente de Deus e o Diabo Na Terra do Sol, de 1964) e em um vídeo antigo que voltou a circular, em que ele mostra sua coleção, está lá uma cópia internacional do filme Orfeu Negro, de Marcel Camus (lançado em 1959).
Para chegar à primavera sul-coreana que o país vive hoje, essa turma mergulhou fundo em obras de Alfred Hitchcock e Martin Scorsese, mas também nos citados Fellini e Kurosawa, além de Bergman e tantos outros diretores que, com suas obras, ensinaram a força e o caráter artístico e social de um filme, atributos que têm de sobra na obra de Bong Joon Ho e de seus contemporâneos.
O resultado é uma safra de filmes que equilibra, com maestria, drama, suspense e uma boa dose de um humor sinistro. São filmes como o citado Oldboy, mas Chan-wook Park não parou por aí. Na filmografia dele há, ainda, dois espécimes excelentes,Sede de Sangue, um curioso drama de terror, sobre um padre vampiro, e A Criada, que assim como Parasita, é repleto de reviravoltas.
Dessa leva também se destacam o frenético filme-de-zumbi Invasão Zumbi (que você pode encontrar no Netflix, e tem uma continuação a caminho), além da própria filmografia do Bong Joon Ho, que inclui obras festejadas por Tarantino (Memórias de um Assassino, de 2003) e flertes com Hollywood (Expresso do Amanhã), além de um título para Netflix (Okja; e não deixe de ver por lá O Hospedeiro, talvez o segundo filme mais famoso do diretor).
*publicado originalmente na edição impressa de 18 de fevereiro de 2020.