Você já ouviu a música nova dos Beatles? Eis uma pergunta estranha, sobretudo porque ela tem sido formulada neste mês de novembro de 2023, 53 anos após os quatro rapazes de Liverpool proclamarem que o sonho acabou, dando fim a um dos mais importantes grupos de música de todos os tempos. Mas, sim, há uma canção nova dos Beatles, ‘Now and then’, lançada quinta-feira passada, reacendendo a chama beatlemaníaca em cada um de nós e trazendo de volta a banda às paradas de sucesso.
‘Now and then’ conseguiu provocar comoção em todo o planeta. Em Liverpool, cidade natal dos Beatles, fãs fizeram fila na porta da loja HMV para comprar o single e ter esse souvenir em formato físico, fosse em vinil ou em CD. Veja bem: fila para comprar disco, em novembro de 2023?! Não chegou ao frisson causado pelas imagens que cansamos de ver da beatlemania, mas é uma boa amostra de que a devoção do grupo está longe de acabar.
A história da nova canção, a esta altura o leitor conhece: corria por volta de 1977 quando John Lennon, instalado no majestoso edifício Dakota, em NY, se dividia entre compor músicas e trocar as fraldas do bebê Sean Lennon. O rascunho dessas canções foi imortalizado em uma fita cassete, dessas que nós tínhamos na estante na era pré-internet.
John Lennon foi assassinado em 8 de dezembro de 1980 na porta de casa. Restaram três Beatles que, 14 anos depois, embarcaram no projeto Anthology, uma série documental (desdobrada em DVDs, CDs e livro) lançada em novembro (olha aí…) de 1995. Além de contar toda a história do quarteto de Liverpool, o projeto trazia duas músicas novas: ‘Free as a bird’ e ‘Real love’.
As canções estavam na tal fita cassete que Lennon gravou nos anos 1970 e chegaram às mãos de Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr pela viúva Yoko Ono. Letra e música de Lennon, com arranjos trabalhados pelos músicos remanescentes. Dessa safra, além das duas canções finalizadas, havia uma outra que os Beatles tentaram trabalhar, mas foram derrotados pela falta de uma tecnologia que conseguisse ajustar a voz e o piano de Lennon aos arranjos criados pelos ex-companheiros. Era ‘Now and then’, que, à época, foi para gaveta.
Quase 30 anos depois, quando George Harrison já havia se juntado à Lennon em outro plano, e Paul e Ringo encontraram o cineasta Peter Jackson para dar vida ao filme Get Back, uma luz foi acesa: ao trabalhar com inteligência artificial para restaurar o filme, a equipe do diretor de O Senhor dos Anéis, enfim, conseguiu desenvolver uma tecnologia capaz de isolar, limpar e equalizar a voz de Lennon daquela fita.
Então a canção que você, leitor, pode ouvir nas plataformas digitais hoje tem a voz de John de 1977, a guitarra de George extraída das sessões de 1994, e o baixo de Paul e bateria de Ringo gravados em 2022 – o multi-instrumentista Paul McCartney ainda teria tocado piano para substituir o que Lennon gravou na fita, cuja qualidade sonora não se equiparava aos demais instrumentos.
Macca ainda encomendou a Giles Martin, filho do lendário produtor George Martin, uma seção de cordas, mantida em segredo para os músicos – e eu, de cá, fico imaginando a surpresa que cada um teve ao saber que, agora, integra uma canção dos Beatles, muitos dos quais sequer haviam nascido quando a banda terminou.
Paul, assim como os demais envolvidos, tiveram muito cuidado em explicar como a tal inteligência artificial foi utilizada no processo. Quando o mundo ficou sabendo que os Beatles iriam lançar uma nova canção com uso de IA, muitos acreditaram que a voz de Lennon seria (re)construída com a tecnologia, algo refutado até mesmo por Sean Lennon em um documentário de 12 minutos disponível no YouTube. Curiosamente, nesse mesmo curta, Sean é taxativo ao dizer que é a última canção envolvendo o quarteto, enquanto Paul apenas pondera: “Provavelmente a última canção feita pelos Beatles”.
Um videoclipe de ‘Now and then’ foi lançado na tarde da última sexta-feira (dia 3), o que aumentou a carga emocional desse suposto derradeiro ato. Dirigido pelo próprio Peter Jackson, o clipe reúne os quatro Beatles em momentos de ontem e de hoje.
Assim, o Paul de 80 anos se encontra com o Lennon de 20 e poucos, incluindo flagrantes emocionados do mais velho, em contraposição à personalidade brincalhona do mais novo – aqui, sim, uma manipulação digital a olhos vistos, em um desfecho arrepiante para quem ama, e sempre amará a música daqueles quatro rapazes de Liverpool.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 07 de novembro de 2023.