Viajando a Liverpool nessas férias, me peguei pensando que todos nós ouvimos músicas por anos, décadas a fio, sem saber quase nada sobre os artistas que estão ali, imprimindo seus talentos em LPs, CDs, fitas K7, ou nas plataformas de streaming. Pensei isso a caminho da cidade que deu ao mundo o mais importante grupo de música popular de todos os tempos: The Beatles.
Foi uma viagem em família, sobretudo, para propiciar ao meu filho mais velho, Gael, a imersão completa no grupo que ele já nasceu amando, uma paixão que passou dos avós para os pais e chegou até ele e a ainda pequena irmã, que atende, veja só, pelo nome de Jude. No roteiro, a tradicional peregrinação pelas casas onde John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr cresceram e os marcos que se tornaram históricos graças a canções como “Penny Lane” e “Strawberry fields forever”.
Ponto alto desse passeio foi entrar nas famosas casas da 251 Menlove Avenue e a 20 Forthlin Road: a primeira foi residência de John e a segunda, de Paul, esta onde cerca de 100 canções dos Beatles foram compostas, de acordo com o guia da National Trust do Reino Unido, responsável por zelar por mais de 500 propriedades históricas na Europa.
Há todo um protocolo para visitar as casas: os ingressos (válido para ambas as residências) só podem ser adquiridos através do aplicativo do National Trust, e o acesso se dá através de um transporte da organização, que vai buscar os visitantes em um ponto pré-determinado e levá-los de volta ao mesmo ponto. E mais: em cada visita, são admitidos grupos de até 15 pessoas e, em hipótese alguma, são permitidos registros fotográficos ou em vídeo do interior das residências.
Embarcamos ao som, claro, de canções dos Beatles, que o simpático motorista colocou no trajeto até a primeira parada: a casa da Tia Mimi. Mary Elizabeth Smith é a tia materna que cuidou de Lennon da infância até a beatlemania. No quintal da residência de dois andares da chamada Mendips, o guia apontou a árvore que o pequeno Lennon brincava na infância, e lá dentro, há uma série de memorabílias referentes ao ex-beatle, como desenhos que ele fez na época (réplicas exatas dos originais, que estão com Yoko Ono), o quarto onde ele dormia e o que ele fazia em cada cômodo, todos impecavelmente preservados como eram nos anos 1950.
A casa da família McCartney, na qual moravam o casal Jim e Mary e os irmãos Paul e Mike, também conserva o ambiente dos anos 1950, onde Paul se reunia com John e George (Ringo só apareceria mais tarde) para ouvir, tocar e compor músicas. Mais do que fotos, cadeiras e o piano onde Jim costumava tocar nas animadas festas da família — também uma réplica exata; o original, o guia me disse, está com Paul na fazenda onde ele mora, no interior da Inglaterra, o que permitiu que tanto eu, quanto Gael, tocássemos algumas notas naquele piano/ambiente mágico, infelizmente sem registros, seguindo a política da visita —, as casas estão repletas de histórias, histórias maravilhosas.
Na casa de John, o guia que nos recebeu se posicionou exatamente onde Tia Mimi, na cozinha, vinha receber os amigos de John, Paul e George, de um jeito nada afável. Os futuros integrantes dos Beatles integravam uma revolução de costumes em que a garotada costumava se vestir e pentear os cabelos como “teddy boys”, algo como arruaceiros, o que era uma afronta à conversadora Mimi, que não via nos rapazes uma boa companhia para seu sobrinho prodígio.
Do mesmo modo, Jim McCartney achava John Lennon uma má companhia para Paul, o bom moço criado com tanto zelo pelo pai viúvo (tanto John, quanto Paul perderam suas respectivas mães ainda na adolescência), e Harold Harrison, pai de George, nunca quis que o filho seguisse o caminho da música, preferindo uma profissão mais convencional.
Ouvindo essas histórias, é impossível não pensar: “E se?”. E se Paul e George dessem ouvidos aos respectivos pais? E se Lennon não fosse dono do próprio nariz e abdicasse da companhia dos amigos em prol de Mimi? E se Brian Epstein, ao ver os Beatles pela primeira vez, no Cavern Club, tivesse dado ouvidos ao amigo, que achou o grupo “uma porcaria”, e não tivesse interesse em agenciá-los? Pensar que o universo conspirou — e muito — para que os quatro rapazes de Liverpool se juntassem e criassem o repertório que mudaria a história da música pop para sempre é algo muito mágico, não é?
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 26 de novembro de 2024.