Cowboy Carter, novo álbum da cantora Beyoncé, é um “assombro”, no bom sentido. Ele vem me assombrando pela força vital que ele carrega e me conquistando pela excelência musical e o engajamento que apresenta em suas canções. É um disco em que a texana Beyoncé, 42, reclama para si e para os seus, expressões da cultura negra que não estão mais associadas à tradição de quem os inventou. Exemplo? A música country que ela abraça neste trabalho.
Um “google” rápido e chego à página Rodeo West, que aparece no topo da pesquisa. Nela estão listados os “10 cantores country de sucesso dos Estados Unidos”, encabeçada pelo casal Johnny Cash e June Carter, que ocupam a primeira e segunda colocação, respectivamente. A lista segue com Blake Shelton, Dolly Parton, Hank Williams, Carrie Underwood, Tim McGraw, Faith Hill, Merle Haggard e, por fim, Elvis Presley. Todos brancos como lençol de hotel.
O country data dos anos 1920 e surgiu quando músicos norte-americanos uniram estilos oriundos da África com instrumentos importados da Europa. É atribuído ao bluesman Jimmy Rogers (que chegou a integrar o grupo liderado por Muddy Waters) a propagação desse então gênero novo. E adivinha? Ele era negro. Então é legítimo - e importantíssimo - o que Beyoncé propõe em Cowboy Carter.
O álbum é uma espécie de disco conceitual, como o é Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles. Ao longo de 27 faixas, Beyoncé faz uma espécie de programa de rádio, com apresentadores do quilate de Willie Nelson e Dolly Parton. Aliás, de Parton ela regravou “Jolene”, alterando alguns versos da letra para que a mulher que está perdendo o marido não seja a submissa da abordagem original, mas totalmente empoderada: “Jolene, Jolene, Jolene, Jolene. Aviso para você, não venha atrás do meu homem. (...) Não arrisque só porque acha que pode”.
“Jolene” é uma das três versões do repertório. Ela recria, quase como uma vinheta, “Oh Luisiana”, de um discaço Chuck Berry, San Francisco Dues (1971), mas o grande lance de Cowboy Carter é a belíssima versão para “Blackbird”, que levou Paul McCartney às redes sociais para elogiar o trabalho da Queen B publicamente. “Penso que ela faz uma versão magnífica e reforça a mensagem dos direitos civis que me inspirou a escrever a música”, escreveu o ex-Beatle.
O tema da canção versa sobre um episódio envolvendo a expulsão de crianças negras de uma escola na América dos anos 1960. “Quando vi as imagens na televisão, no início dos anos 60, das meninas negras sendo expulsas da escola, achei chocante e não posso acreditar que ainda hoje em dia existam lugares onde esse tipo de coisa esteja acontecendo agora”, escreveu Paul na mesma postagem. “Qualquer coisa que minha música e a versão fabulosa de Beyoncé possam fazer para aliviar a tensão racial seria ótimo e me deixaria muito orgulhoso”.
Cercada dos melhores músicos da indústria de hoje, ela imprime sua cruzada não em um disco estritamente country, mas repleto de gospel, soul, funk, r&b e até pitadas do rock safra 1970, combinação que, aliada à voz de Beyoncé, cria uma identidade própria.
É nesse embalo que o disco oferece grandes e marcantes canções. Balada épica que mistura country, soul e blues, “16 Carriages” e a letra fala de alguém que teve que batalhar desde muito cedo (dizem que é autobiográfica, afinal ela tinha 16 anos quando começou a cantar profissionalmente). Outra balada, “Bodyguard”, com sua levada contagiante e vocalizes malemolentes, é daquelas que a gente ouve repetidas vezes sem cansar.
Ela vem logo após “Texas hold’ em”, toda calcada no country raiz e que já fez história ao tornar Beyoncé a primeira mulher negra a liderar as paradas country dos EUA e levando os ouvintes a buscar mais cantoras negras no gênero majoritariamente branco, como Tanner Adell (que aparece, junta a outras três cantoras, na versão de “Blackbird”, dos Beatles) e Linda Martell. E ainda tem a balada agridoce “II most wanted”, dueto de Beyoncé com a cantora pop Miley Cyrus, filha do ícone country Billy Ray Cyrus.
Beyoncé e seu maravilhoso disco são necessários no mundo de 2024, em que o conservadorismo é o pesadelo das minorias e que a arte engajada, como a cantora propõe, é sufocada pelo “fast food” de hits insossos feitos não para provocar uma reflexão histórica, mas para viralizar no TikTok. Precisamos de mais discos como Cowboy Carter.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 16 de abril de 2024.