Neva fora do amplo estúdio de gravação de Bruce Springsteen, em Nova Jersey, enquanto lá dentro, o cantor e compositor mostra uma música inédita somente com sua voz e seu surrado violão. Ao redor dele, os integrantes da E Street Band, todos com blocos de papel na mão, vão anotando observações a respeito do arranjo que irão executar logo em seguida.
A passagem está registrada no filme Letter to You, que documenta a gravação do álbum homônimo, o vigésimo do cantor e compositor. O documentário está disponível na Apple TV desde sexta-feira passada, data em que o disco de inéditas chegou às plataformas digitais com suas 12 canções (há edições em LP e CD, mas por enquanto, só importadas).
Letter to You marca, mais uma vez, o reencontro de Bruce com a E Street Band, grupo que o acompanha há 45 anos, com algumas “folgas” de discos e palcos. The Boss não reunia a rapaziada, assim, com todo mundo, desde as gravações de Working on a Dream (2009), embora tenha encontrado alguns deles nos discos seguintes – o time é responsável por alguns dos mais importantes discos do chefe, entre eles Born to Run (1975), The River (1980) e o celebrado Born in the U.S.A. (1984).
A E Street é uma extensão natural e orgânica da persona roqueira de Springsteen. Os discos dele que você ouviu em outras direções, como o fabuloso CD de country-folk Western Stars (2019), não contam com a banda. Mas para o rock, ela é fundamental na carreira do cantor e compositor.
Isso garante a energia e o vigor do novo trabalho, que foi gravado ao vivo, dentro do estúdio. O filme mostra que a gravação é um encontro de velhos amigos que Springsteen faz questão de colocar em primeiro plano. Estão lá Max Weinberg, Garry Tallent, Steve Van Zandt, Roy Bittan e Patti Scialfa – com quem Springsteen se casou em 1991. Ele também lembra dos já mortos Clarence Clemons (o lendário saxofonista, substituído na banda por seu sobrinho, Jake Clemons) e Danny Federici.
Letter to You é um disco emotivo, ainda mais do que seu antecessor, o citado Western Stars. O gatilho para esse novo trabalho – confessa o músico – partiu da percepção que, após a morte de George Theiss, ele era o único remanescente de sua primeira banda “mais-ou-menos-profissional”, The Castiles.
Portanto, o repertório – que sempre foi muito autobiográfico – versa muito sobre o passado (ele até sacou três canções daquela época, entre elas ‘Janey needs a shooter’ e ‘Song for orphans’, ambas com forte influência de Bob Dylan, ídolo confesso de Springsteen). É um disco que só poderia ter sido feito por um artista maduro que não tem mais o que provar, a não ser que está vivo, e bem vivo!
Eu demorei muito a chegar em Springsteen. Despertei para sua obra somente em 2002, quando caiu em minhas mãos o CD The Rising, um disco “levanta moral” para uma América devastada pelo atentado de 11 de Setembro, ocorrido no ano anterior. Ouvi com atenção e percebi duas coisas: 1) as canções, arranjos e execução eram fabulosos; 2) ele escreve ótimas letras. A partir daí, não perdi um lançamento do Boss, além de procurar os discos que eu havia perdido até então, o que não eram poucos.
Nos últimos dez anos, Springsteen, além de grandes álbuns, tem compartilhado um pouco a sua vida em uma fase de expressão pessoal sem precedente ao longo de 50 anos de carreira. Em 2016, lançou sua autobiografia (intitulada Born To Run, mesmo nome do disco de 1975), um ótimo livro de memórias com passagens hilárias e, muitas vezes, reveladoras.
A relação conturbada com o pai e seu próprio papel como pai de três crianças (fruto do casamento com Scialfa, que ano que vem completa 30 anos), os ataques de pânico e ansiedade e sua própria visão do artista que se tornou são emparelhadas com as armadilhas do showbusiness e algumas (poucas) histórias por trás das canções em um livro delicioso de se ler – sim, sua escritora é fluida e muito divertida.
O livro deu origem a um espetáculo solo que estreou na Broadway em 2017, com casa cheia por mais de um ano. Springsteen on Broadway, repleto de ótimas histórias e versões acústicas e inéditas de seus grandes sucessos, pode ser visto no Netflix e sua trilha sonora, ouvida em plataformas como Spotify e Deezer.
Os trabalhos seguintes – tanto o novo Letter To You, quanto o anterior, Western Stars – se tornaram projetos multimídia, saindo em disco e em vídeo. No caso de Western…, foi lançado um belo e poético show acústico, gravado no celeiro da fazenda do roqueiro, em que ele e uma orquestra tocam o disco na íntegra, disponível tanto para compra no streaming, quanto em DVD.
E em paralelo a tudo isso saiu, no ano passado, o filme A Música da Minha Vida, dirigido por Gurinder Chadha (de Driblando o Destino). Trata-se de uma “dramédia” (drama e comédia) sobre um jovem de origem paquistanesa que, vivendo no Reino Unido, tem sua vida modificada ao descobrir a música de Bruce Springsteen. De longe, é muito melhor que o superestimado Yesterday (voltado aos Beatles e lançado na mesma época). Aliás, A Música da Minha Vida, disponível no Brasil tanto em streaming, quanto em DVD e blu-ray, é, seguramente, um dos melhores filmes de 2019.