por André Cananéa*
Não tinha como ser diferente. Um show de Caetano Veloso é um ato político. E em um domingo, a exatos sete dias da eleição que irá definir o próximo presidente do Brasil, em uma disputa acirrada entre Lula e Bolsonaro, uma das vozes mais importantes e eloquentes da esquerda brasileira não iria ficar calado. Um domingo em que uma figura característica da direita extrema brasileira, o ex-deputado Roberto Jefferson, resistiu à prisão atirando contra policiais utilizando fuzil e, pasme, granadas – que feriram dois agentes federais – não iria passar em brancas nuvens pelo cantor e compositor que até hoje guarda sequelas de um regime de exceção que lhe custou caro. Foi nesse domingo (23) que o baiano apresentou, no Teatro Pedra do Reino, em João Pessoa, a turnê Meu Côco.
“Estou aqui, hoje, na Paraíba, exatamente no dia em que um esboço de insurreição se explicita de uma maneira absurda. Eu fico pedindo aqueles que, enganosamente, creem que podem, mesmo remotamente, apoiar esse tipo de política destrutiva, eu peço à Deus para que a gente nunca deixe isso prosseguir”, disse Caetano, na primeira meia hora de show.
No entanto, apesar das manifestações do público contra a reeleição do presidente e a favor do candidato do PT, Caetano não fez do seu show, um comício. Fez, sim, uma grande apresentação, repleta de vitalidade, energia e dança, muita dança, lembrando a morte do conterrâneo Luiz Galvão, fundador dos Novos Baianos, no sábado (22), e rememorou as bandas que formou ao longo de mais de 60 anos de carreira.
O repertório corre em três pistas. A espinha dorsal é o seu mais recente disco, Meu Coco, lançado nas plataformas digitais há exato um ano. Caetano também resgata algumas pérolas “lado B” de seu vasto repertório e, claro, afaga os fãs de muito, e pouco tempo, com um punhado de seus sucessos obrigatórios, como ‘Baby’, ‘Sampa’, ‘Reconvexo’ e ‘O leãozinho’.
Na idade, o público que compareceu ao Pedra do Reino foi até mais heterogêneo que o de Chico Buarque, realizado no mesmo teatro, em setembro. Em meio aos contemporâneos do octogenário artista baiano, havia muitos jovens que pediram até canções novíssimas, como ‘Sem samba não dá’, que ele cantou quase ao final da apresentação. E a garotada cantou junto.
A música, lançada em Meu Coco, cita, nominalmente, artistas da nova geração, como a dupla Anavitória, o rapper Baco Exu do Blues e a cantora “Mar(av)ília Mendonça”, como registrado na letra.
O apelo junto ao público “jovem adulto”, como gosta de rotular o mercado, não para por aí. Ao revisitar ‘A bossa nova é foda’, faixa de Abraçaço, CD que acaba de fazer 10 anos, ganha um arranjo tribal poderosíssimo, calcado na percussão, contrabaixo pulsante e um teclado sintetizado em brasa, que não deixa nada a dever às novas bandas do rock inglês.
O repertório contemplou 22 canções, antes de Caetano e banda voltarem para entregar mais quatro números, no bis: ‘Mansidão’ (lançada por Jane Duboc em 1982), as festivas ‘Odara’ e ‘A luz de Tieta’ e o biscoito fino ‘Noite de cristal’ (que a irmã Maria Bethânia lançou em Maria, de 1988). O show abre com ‘Avarandado’, música do LP Domingo, de 1967, e, sem demora, mostra a faixa-título do álbum de 2021. Aliás, das 12 faixas de ‘Meu Coco’, ele canta sete.
Os 50 anos de Transa, para muitos a obra-prima do baiano, são lembrados com ‘You don’t know me’. Em ‘A outra banda da terra’, ele aproveita para contar a história da banda homônima que montou e com ela gravou, entre outros discos, Uns (1983), no qual a música foi lançada. Rememorar os grupos que ele formou – notadamente a Banda Nova e Cê –, bem como a influência do arranjador Jaques Morelenbaum em sua carreira, foi motivo de muito papo e algumas risadas.
Do disco considerado “maldito” do artista, o experimental Araçá Azul (1973), ele extraiu ‘Araçá blue’, cujos versos “Com fé em Deus / Eu não vou morrer tão cedo”, soam como uma súplica de um homem que passou dos 80. Caetano voltou ao experimentalismo com ‘Pulsar’, poema de Augusto de Campos que ele musicou e lançou em Veloso (1984). “Em ‘Anjos tronchos’ (música do disco novo, presente no show), eu falo em ‘... há poemas como jamais ou como algum poeta sonhou’. Estou me referindo diretamente a Augusto de Campos”, pontuou Caetano.
No palco, um dos grandes ícones da música brasileira se mostra tão à vontade que até esquece que tem 80 anos (completados em agosto). Caetano dança muito e canta bastante, com uma voz ainda afinada e bastante preservada, que encontra aconchego em novos arranjos para velhas canções, executados com esmero em uma superbanda que inclui três percussionistas – entre eles o célebre Pretinho da Serrinha, que esteve em João Pessoa em abril, com Marisa Monte.
E, claro, no Brasil de 2022, às vésperas do segundo turno, as letras de Caetano ganham novo sentido, e talvez uma interpretação intencional do artista, com uma torcida subliminar (ou não) em relação ao resultado das eleições: “Deixa eu cantar / Que é pro mundo ficar odara / Pra ficar tudo joia rara / Qualquer coisa que se sonhara / Canto e danço que dará”.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 25 de outubro de 2022.