por André Cananéa*
A palavra “cancelamento” ganhou popularidade a partir do BBB21, edição que nossa conterrânea Juliette sagrou-se vitoriosa. Logo no início do programa, polêmicas envolvendo a artista Karol Conká, tida como uma “metralhadora de cancelamentos”, como ouvi na época, ajudaram a popularizar o termo. Cancelamento é uma espécie de veto, de rejeição, de “sai pra lá”... e a polêmica do cancelamento da vez envolve uma canção composta em 1966 por um jovem de 23 anos chamado Chico Buarque, atendendo a um pedido de uma intérprete só um pouco mais velha que ele, Nara Leão, que queria uma música de “mulher sofrida”.
‘Com açúcar e com afeto’ foi lançada por Nara no LP Vento de Maio, de 1967, e regravada por um sem número de cantoras e cantores, de Maria Creuza à italiana Mina, de Rosa Passos (em versão instrumental) a Fernanda Takai, isso quando célebres artistas, como Maria Bethânia, se não a gravou, costumava cantá-la em repertórios de outrora, assim como seu autor, que recentemente a “cancelou” em definitivo de seus shows.
A avalanche que virou polêmica foi acesa a partir de uma provocação feita na excelente minissérie O Canto Livre de Nara Leão, disponível na Globoplay. Afinal, a canção em primeira pessoa que retrata um amor submisso era – nas palavras de Chico – algo comum na sociedade de então. Não mais hoje, contudo. Afinal, no entender do mundo igualitário de 2022, a letra é machista ao mostrar uma mulher tolerante às cafajestices do marido e ainda recompensá-lo “com açúcar e com afeto”.
“As feministas têm razão, vou sempre dar razão às feministas…”, afirma Chico na série da Globoplay, “...mas elas precisam compreender que naquela época não existia, não passava pela cabeça da gente que isso era uma opressão, que uma mulher não precisa ser tratada assim”.
É fato que muita coisa mudou nos últimos 50, 60 anos. E mudaram muito rápido, se a gente parar para pensar. Mas a arte é um retrato de seu tempo, e desconectá-la de seu contexto dá muito pano pra manga. De Elis Regina cantando “Nega do cabelo duro / Qual é o pente que te penteia / Qual é o pente que te penteia, nega?” a Dorival Caymmi conclamando que “com qualquer dez mil réis e uma nega, ô / se faz um vatapá”, há centenas – eu disse centenas – de canções que não seriam bem vistas hoje.
Mas há que se refletir: todas são ofensivas, depreciativas, preconceituosas? Quais estão à serviço de uma crítica aos costumes e quais, de fato, endossam comportamentos estereotipados? O próprio Chico tem outras canções que, à primeira vista, seriam queimadas no fogo do cancelamento. ‘Mulheres de Atenas’, por exemplo! (“Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas / Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas). A canção, repleta de ironia, é uma clara crítica à falta de igualdade entre homens e mulheres.
Contudo, esse debate em torno de uma música de Chico Buarque – que como vocês bem sabem, tem os braços em volta de Lula e uma postura histórica de esquerda e combate às ditaduras da direita – deixa de lado algo que eu vejo com uma gravidade muito maior: as canções de funk, sertanejo e “forrónejo” que continuam a ser produzidas, de maneira nem um pouco sutis, reforçando estereótipos e preconceitos, sobretudo os funks ditos “proibidões”, termo que parece despertar mais interesse do que alertar para um problema sério, afinal enquanto você lê este texto, milhares de jovens estão propagando conteúdos machistas e misóginos, quanto em bailes quanto nas redes sociais, com as populares “dancinhas do TikTok”.
São canções (e, muitas vezes, videoclipes) que atendem por nomes como “Open the tcheca”, “Adestrador de cadela”, “Predador de perereca”, “Novinha taradinha” e daí para baixo... mas isso, ninguém fala, né?
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 8 de fevereiro de 2022.