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Charlie Watts, a antiestrela do rock

publicado: 31/08/2021 08h00, última modificação: 31/08/2021 09h01
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tags: charlie watts , rolling stones , André Cananéa

 

Eu já havia organizado meus rascunhos para publicar, justamente hoje, um texto a respeito do lançamento – agora, decente – do show que os Rolling Stones fizeram no Rio de Janeiro em fevereiro de 2006. Lançado originalmente em DVD no ano de 2007, em meio a outros shows da turnê The Biggest Bang, a apresentação do Rio ganhou registro mutilado. Agora, sai com repertório na íntegra, em múltiplas edições, incluindo uma tentadora caixa de luxo. Mas aí, o baterista Charlie Watts morreu.

Aos 80 anos (completados em 2 de junho), o primeiro e único baterista dos Stones morreu em 24 de agosto, em Londres, de causas não informadas. Estava na banda desde a gênesis, quando Keith Richards e Mick Jagger se organizavam para ter uma banda e flertavam com um jovem que tocava bateria – e muito bem – em um clube de jazz. “Estávamos caçando um batera. Chegamos a dizer: ‘Cara, seria perfeito ter o Charlie Watts, se a gente conseguisse bancar o custo’, porque todos achávamos que ele era um baterista enviado à Terra por Deus”, anota o guitarrista dos Stones em sua autobiografia, Vida.

Algumas páginas mais para frente, Keith Richards afirma: “Tivemos uma sorte danada de trabalhar com Charlie Watts. Ele tocava muito parecido com os percussionistas negros tocando com Sam e Dave e os tipos de música da Motown, ou os percussionistas do soul. Ele tinha aquele toque”.

Watts se tornou não só um integrante, como “o” lendário membro dos Rolling Stones. Era um completo outsider da fama que o grupo trouxe a ele e seus integrantes. Discreto, sóbrio e sempre elegante, era a figura da antiestrela do rock e sempre me pareceu aquele típico cidadão inglês, extremamente educado e polido.

Para se ter uma noção da personalidade do “batera”, no making of de quase meia hora que acompanha o show do Rio no box The Biggest Bang (e, inexplicavelmente, ignorado na edição 2021), enquanto o camarim para Richards tinha mesa de sinuca e sedas italianas espalhadas pelo sofá, no de Charlie Watts só existia um closet com roupas alinhadas por cores, impecavelmente dispostas.

Talvez por isso, ainda me surpreenda ao ver a capa do álbum Get Yer Ya-Ya’s Out!, de 1970. Nela, um saltitante Charlie Watts caminha com uma guitarra em cada mão, seguido por um jumentinho que leva partes da bateria e outra guitarra. O baterista exibe um raro sorriso largo, em contraposição ao sorriso tímido que, vez ou outra, mostra em algum documentário sobre a banda (o próprio Watts é destaque no primeiro filme sobre os Stones já a partir do título, Charlie Is My Darling, de 1965).

 

Na biografia que o jornalista Philip Norman publicou sobre Mick Jagger em 2012, ele afirma que Charlie, apesar de toda a riqueza e celebridade, ainda considerava o fato de ter se juntado à banda como uma mudança errada e desastrosa em sua vida. “Enquanto tocava o mesmo ritmo juvenil em arenas gigantes ao ar livre, ele secretamente ansiava por tocar jazz com espíritos afins em algum clube esfumaçado no Soho. Alguém disse a respeito dele que, em qualquer lugar do mundo em que ele se encontrasse com os Stones, ele sempre desejava pegar o próximo avião para casa”.

Ainda segundo Norman, entre todos os integrantes do grupo, era o baterista quem Mick Jagger mais respeitava, tratava melhor e escutava com mais atenção. “Desde que os Stones começaram, Charlie Watts nunca demonstrara qualquer egoísmo ou temperamento, aceitando o seu lugar nas ‘outras patentes’ com um estoicismo quase zen, absorvendo a sua parte igual e imerecida de todos os problemas e notoriedade sem reclamar, permanecendo fiel a sua esposa, Shirley, em face de toda a tentação, injetando uma dose de bom senso, humor ou humanidade quando a loucura ameaçava tornar-se avassaladora”.

E ao recordar a primeira sessão profissional de fotos dos Stones para divulgação, feita pelo então jovem fotógrafo Philip Townsend, Norman comenta: “Aos olhos do século 21, sem demonstrar nenhum traço de maldade ou grosseria, Mick se destaca com seu paletó de gola raglan, mas se alguém parece a estrela do grupo é o elegante e enigmático Charlie Watts”.

Quanto ao show dos Stones, em Copacabana, bem, eu estava lá. Vi Mick, Keith, Ron Wood e, claro, Watts do tamanho de um Playmobil, como registrei em um artigo para o Jornal da Paraíba na edição de 23 de fevereiro de 2006. Mas vi. Show vibrante, empolgante, levando à loucura mais de 1,5 milhão de pessoas, conforme registra a contracapa da edição em blu-ray+2 CDs importada que este escriba aqui adquiriu em uma loja na internet (até agora, não há informações de uma edição nacional do produto).

Rever a apresentação, desta vez com ‘Tumbling dice’, ‘Oh, no, not you again’, ‘This place is empty’ e ‘Sympathy for the devil’, que foram limadas da caixa de 2007, foi um belo reencontro com as emoções e o deleite de ver, ao vivo, uma das melhores bandas de rock da história, imerso na catarse que é assistir a um show na aglomeração de milhares de pessoas, da calçada do Copacabana Palace, quase ser esmagado, mas, enfim, é apenas rock’n’ roll, e eu gosto!

 

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 31 de agosto de 2021