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Cinebiografias, blah!

publicado: 20/02/2024 14h14, última modificação: 20/02/2024 14h14
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Kingsley Ben-Adir interpreta o músico Bob Marley na cinebiografia ‘One Love’ - Foto: Paramount Pictures/Divulgação

por André Cananéa*

Li, ontem, que Bob Marley: One Love alcançou o primeiro lugar nas bilheterias dos cinemas dos Estados Unidos durante o fim de semana. O filme é uma cinebiografia do cantor jamaicano, a partir de um recorte: vai de quando ele propõe um show pela paz em uma Jamaica em pé de guerra, até o momento em que ele volta ao país para um novo show, reunindo os rivais Michael Manley e Edward Seaga e fazendo-os apertarem as mãos.

Entre um marco e outro, a história se desenrola com a ida de Bob Marley à Europa, após um atentado à bala em seu país. Em Londres, grava o seminal LP Exodus e excursiona pelo continente antes de retornar à Jamaica. Flashbacks da infância e de como ele conheceu a esposa Rita Marley e aderiu ao Rastafári (religião judaico-cristã bastante comum na Jamaica) recheiam o enredo do filme dirigido por Marcus Green.

Eu vi One Love na terça-feira de Carnaval. Sala lotada no Centerplex Mag Shopping (não saberia dizer se pelo filme em si ou pela promoção em voga de dois ingressos por R$ 15) e não há nada no filme que me faça saudá-lo como uma obra superior. Apenas a manjada cinebiografia em que praticamente todos os grandes sucessos do cantor explodem nos alto-falantes em meio ao retrato de um homem que pregava a paz, mas era capaz de esmurrar seu empresário pela desconfiança de desvio de dinheiro, além de não valorizar o casamento, nem muito menos a esposa – relegada à mãe e backing vocal da banda The Wailers.

Não se pode exigir muito de cinebiografias, penso eu. Bradley Cooper, ao menos, tentou dar um state-of-the-art em Maestro (disponível na Netflix), sobre o maestro, compositor e arranjador Leonard Bernstein, autor de trilhas para musicais do quilate de West Side Story e Um Dia em Nova York. O resultado foram sete indicações ao Oscar, incluindo Melhor Filme, Melhor Ator (para o próprio Cooper) e Melhor Roteiro.

Ao contrário dos documentários, as cinebiografias têm o apelo do drama. Feitos são realçados para produzirem efeitos emocionais no público, mas, comumente, erram na dose. Domingo passado, o perfil Cinematographico7 no Instagram (baseado em João Pessoa) recuperou uma chamada do SBT para o filme John e Yoko: Uma História de Amor, inspirado na vida de John Lennon e Yoko Ono.

Produzido diretamente para televisão em 1985, a propaganda do filme crava: “Em nome de uma grande paixão, (John Lennon) deixou sua carreira e o seu sucesso”. Que conversa! Lennon nunca abriu mão da carreira por Yoko. Mas o filme investiu na água-com-açúcar para atrair os não beatlemaníacos também!

Essas distorções são muito comuns, haja visto que todas as cinebiografias são, via de regra, apenas “baseadas em fatos”. Isso me leva ao trailer de Back to Black, a cinebiografia da cantora Amy Winehouse, prevista para estrear ainda este semestre. Pelo trailer dá para sacar que o relacionamento tempestuoso dela com Pete Doherty dará o molho ao enredo, sobrepondo uma história de amor (em geral, pífia) ao que realmente importa: o talento.

Além do mais, há sempre o problema da interpretação: a grande maioria opta por imitar o biografado e não ser ele, ou ela. É o caso do Bob Marley de Kingsley Ben-Adir, que ainda nos faz ver um Marley galã, coisa que ele não era. Com maquiagem pesada e trejeitos na fala, Bradley Cooper tenta ser mais que um imitador de Leonard Bernstein; quer ser ele (na minha modesta opinião, é apenas uma imitação mais caprichada). Lembro agora do Jim Morrison de Val Kilmer em The Doors, ainda mais afetado que o cantor era.

Muita gente não entende o Oscar que Rami Malek ganhou por sua interpretação de Freddie Mercury em Bohemian Rhapsody (Star+). Apesar da dentadura postiça (que incomoda bastante, visualmente falando), ele entrega o próprio vocalista do Queen dentro daquela história. É bom lembrar que posto em uma cinebiografia, o biografado passa a ser um personagem daquele filme, não alguém dissociado da história por existir em um plano real.

Talvez por isso eu goste tanto de Mussum, o Filmis (Telecine), com a entrega perfeita de Aílton Graça no papel do Trapalhão, e Amadeus (disponível para compra na Apple TV ou Google), de Milos Forman, cuja premissa é, de largada, extraordinária: vida e obra de Mozart (Tom Hulce) pelo ponto de vista de seu invejoso colega Salieri (F. Murray Abraham) – ambos indicados ao Oscar; Abraham venceu.

O leitor pode até argumentar que não há registros audiovisuais para que possam ser comparados o Mozart real de seu intérprete. E precisa? O desempenho de ambos (Hulce e Abraham) é irretocável e serve exemplarmente a história. É o que importa. E grandes filmes, incluindo cinebiografias, são feitas disso, de interpretações, não de imitações.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 20 de fevereiro de 2024.