Semana passada fui alertado por um amigo que ele tinha um amigo que estava se “desapegando” de alguns itens de uma (boa) coleção de DVDs e blu-rays. Não demorei a chegar ao link que descortinava um acervo tentador. Em meio a edições especiais da Versátil e filmes de super-herói, dei de cara com um livro que há muito procurava: História do Cinema: Dos Clássicos Mudos ao Cinema Moderno, de Mark Cousins, lançado em 2004 e editado pela Martins Fontes em 2013, atualmente fora de catálogo.
O livro é um curso de cinema, com duração de 512 páginas. Parte do momento em que surgiu a eletricidade, passa pela criação do cinema propriamente dito – do ponto de vista técnico – e passeia pelo mundo da Sétima Arte, focando em produções de diversos países (com uma certa rejeição ao circuitão de Hollywood, sem, contudo, ignorá-lo) ao longo de mais de 100 anos.
Entrei em contato com o cidadão e pedi para reservar o livro, já que eu tinha interesse em comprá-lo. Foi quando ele me disse algo que me surpreendeu: “Nem precisa reservar. Ninguém procura esse livro. Cinéfilo está em extinção!”. Eu, como um aprendiz da Sétima Arte, fiquei sem acreditar: “Como é?!”. “Bem, pelo menos o cinéfilo que lê os livros”, ponderou.
Na verdade, entendo o que ele quis dizer: é raro, hoje, você conversar com alguém que realmente lhe forneça uma apreciação sólida de um filme. Tenho 45 anos e na maioria das vezes só consigo ouvir de pessoas da minha idade, ou mais velhas, uma boa avaliação crítica de um filme, bem fundamentada, partindo de alguém que se dispôs a ir além do filme.
Participo de muitos grupos no WhatsApp e Facebook com pessoas que se dizem “cinéfilas”, ou que “amam cinema”, ou ainda “não saem do cinema” (ou não saíam, antes da pandemia), e sempre há embates sobre o melhor filme de chuva, ou o melhor filme com cãezinhos poodle, ou ainda o melhor filme de Scorsese ou a melhor abordagem para filmes com extraterrestres.
Vira e mexe, alguém sempre cria uma lista pretensiosa como “Os filmes para entender o cinema de terror”, em que o(a) jovem subestima Hitchcock ou ignora a importância de O Iluminado. Outro dia, alguém deve ter ficado chateado comigo quando torci o nariz, com minha coleção de figurinhas irônicas, à afirmação de que Drácula de Bram Stoker, lançado por Coppola em 1992, era o melhor Drácula da história do cinema. Os argumentos de quem defendeu a tese? “Tem os melhores efeitos!”, ouvi (não calado, óbvio).
Esses ditos amantes do cinema costumam achar que, por gostarem de filmes, são críticos natos. E olhe que um cinéfilo não é, necessariamente, um bom crítico, mas todo bom crítico de cinema é, antes de tudo, um cinéfilo.
Penso que, no fim da contas, o agora ex-proprietário de História do Cinema tem razão, afinal, sou de um tempo em que o crítico de cinema era um dos maiores intelectuais da redondeza, ao lado do crítico de arte e do crítico literário. Figuras que realmente têm algo a dizer, não por terem feito um curso on-line de 30 horas sobre cinema com algum “crítico” que faz sucesso em redes sociais, mas que dedicaram boa parte da vida a investigar as razões que fizeram Bergman a dirigir Morangos Silvestres, John Ford conceber Vinhas da Ira e Truffaut a realizar Os Incompreendidos, antes mesmo de passar a estudar cada minuto dessas, e de tantas outras obras-primas.
Penso no que diria o saudoso Antônio Barreto Neto, um dos maiores pensadores do cinema na Paraíba, com um valioso legado, impresso aqui mesmo, em A União. Vejo transparecer a invejável formação acadêmica de João Batista de Brito ao resenhar um filme. As análises sociais, humanas e filosóficas de Isabela Boscov, capaz de deixar Tarantino boquiaberto ao conversar com ela sobre faroeste.
Cito apenas esses três – há outros, no meio acadêmico e jornalístico do nosso convívio – como um modelo a ser seguido pela “garotada” que se propõe a seguir na análise de filmes, independentemente da plataforma que eles escolham. Eles precisam entender que não é só de “achismo” que se faz o crítico. E como o futuro é deles, é de agora que se constrói a base para que sejam influenciadores de fato e de direito.
Em tempo: o livro de Cousins deu origem a uma série documental produzida (e narrada) por ele em 2011, The Story of Film: An Odyssey. Ela chegou a ser lançada em DVD pela Europa Filmes com o nome de A História do Cinema: Uma Odisseia que, de repente, você encontra no Youtube, e com legendas em português. Boa aula!
*publicado originalmente na edição impressa de 11 de agosto de 2020.