por André Cananéa*
Alguns dos discos mais emblemáticos da MPB foram lançados em 1972, portanto completam 50 anos este ano. Começo hoje uma pequena série para comentar três dos meus LPs favoritos desse período: Clube da Esquina, Transa e Expresso 222 – os dois últimos serão explorados nas próximas colunas.
Clube da Esquina é uma obra-prima, inovadora e atemporal. Acabo de ouvi-lo mais uma vez, através de uma edição em CD remasterizada. Afora o repertório de 21 faixas, que mais parece um Greatest Hits, dado o grande número de sucessos que o álbum emplacou nas rádios e na memória afetiva do Brasil (e do mundo), a união de Milton Nascimento com os irmãos Lô e Márcio Borges, Fernando Brant, Wagner Tiso e mais um timaço de músicos, produziu algumas das letras mais inteligentes de toda a história da música brasileira, cantada sobre arranjos sofisticados, combinações inusitadas (como costurar viola caipira com guitarra) e timbres inovadores, ingredientes que tornaram aquele disco de 1972, um dos mais influentes de todos os tempos.
O disco nasceu com a proposta de ser o quinto LP de estúdio da carreira de “Bituca” (apelido de infância dado pela mãe, pelo “bico” que fazia quando ficava emburrado), sucedendo o formidável Milton, o álbum de 1970 que, com faixas como ‘Para Lennon e McCartney’ e ‘Clube da esquina’ (que viria a batizar o LP de 1972), ajudaram a sacramentar o nome de Milton Nascimento.
Mas Bituca queria ir mais longe dessa vez: além de dar mais visibilidade à turma que o acompanhava desde o primeiro disco – Travessia, de 1967, já trazia parcerias de Milton com Márcio Borges e Fernando Brant –, queria que fosse um LP duplo, ideia que encontrou bastante resistência por parte da gravadora, que alegava que os custos de produção fariam o preço do LP subir e, consequentemente, atrapalhar o desempenho nas vendas.
Corria 1971 e a pretensão era ser o primeiro disco duplo de um artista brasileiro, mas Milton nem havia começado a gravar o novo álbum e Gal Costa colocou nas lojas seu próprio LP duplo, o ao vivo Fa-Tal - (Gal A Todo Vapor) – e acredito que na época, ninguém lembrou que em 1967, Wilson Simonal já havia lançado um LP com dois discos, Show em Simonal, também ao vivo.
E olhe que o LP duplo não foi a única exigência, digamos, sui generis de Bituca: ele também queria levar uma saparia para o estúdio. “O Hermeto (Pascoal) não levou porcos para o estúdio da Philips? Por que eu não posso levar um coro de sapos?!”, teria argumentado.
Clube da Esquina foi gestado em uma casa na praia de Piratininga, em Niterói (RJ). Durante quatro meses, Bituca dividiu a casa com o primo Jacaré, mais Lô Borges e Beto Brant e, vez ou outra, recebia os “sócios do clube”, como Fernando Brant e a turma do Som Imaginário (Tavito, Robertinho Silva, Luiz Alves e Wagner Tiso).
Das 21 canções, só duas não eram de Milton e sua turma: ‘Dos cruces’, do compositor de boleros Carmelo Larrea, e ‘Me deixa em paz’, de Monsueto e Ayrton Amorim, que Bituca conheceu na voz de Alaíde Costa (e acabou por convidá-la para participar da regravação). Ao todo, Milton deu voz, solitariamente, a dez canções. As outras dez, ou as dividiu com Lô Borges e Beto Guedes, ou deixou Lô cantá-las sozinho, o que levou Bituca a dividir os créditos do LP com o mineiro.
É desse disco canções que se tornaram eternas, não só no repertório de Milton e Lô, mas na reinterpretação de dezenas de outros artistas, do grupo de rock Ira! ao vocalista do Skank, Samuel Rosa: ‘Tudo que você queria ser’, ‘Cais’, ‘Trem azul’, ‘Cravo e canela’, ‘Um girassol da cor de seu cabelo’, ‘Um gosto de sol’, ‘Nada será como antes’ e ‘Paisagem da janela’, dos famosos versos “Da janela lateral do quarto de dormir…”, que os irmãos Borges compuseram durante uma viagem, inspirada na janela do quarto do hotel onde os dois, com Milton Nascimento, se hospedaram.
Para estampar a capa, utilizaram uma imagem de duas crianças, Cacau e Tonho, na beira de uma estrada de terra em Nova Friburgo (RJ) - por muito tempo, se acreditou tratar de Lô e Milton, quando novos. Reza a lenda que, por 40 anos, Cacau e Tonho não sabiam que estampavam a capa de um dos discos mais famosos do Brasil e, em 2012, resolveram entrar com uma ação na Justiça por danos morais e uso indevido da imagem.
Na biografia Travessia - A Vida de Milton Nascimento (Record), Maria Dolores anota que no Clube da Esquina “não havia manifesto, bandeira, ideologia, nem seus integrantes eram só mineiros” e reproduz uma entrevista que Bituca concedeu ao Jornal da Tarde em 4 de abril de 1972, sobre o disco: “Não pertenço a nenhum grupo (...), não quero que exista um ‘grupo mineiro’. Sou contra essas máfias regionais. A gente está junto, trabalhando junto, porque tem uma porção de coisas para mostrar. E é só isso”.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 8 de março de 2022.