por André Cananéa*
Ícone inconteste da MPB, Chico Buarque incluiu João Pessoa em um capítulo da sua biografia ao escolher a capital paraibana para abrir sua nova turnê, Que tal um samba?, título da canção que acaba de lançar nos serviços de streaming, a primeira inédita em cinco anos. Mais: João Pessoa assistiu ao primeiro show do cantor e compositor carioca desde o início da pandemia de Covid-19, no Teatro A Pedra do Reino, nos últimos dias 6 e 7.
Coestrelado pela cantora Mônica Salmaso, e sustentado por um time de bambas na banda de apoio, o novo show faz um belo passeio pelos mais de 60 anos de carreira de Chico Buarque, com quatro canções dos anos 1960; sete dos anos 1970; 10 dos anos 1980; cinco dos anos 1990 e sete lançadas a partir de 2000.
Mas como o artista tem feito nas últimas turnês, ignora os clássicos retumbantes para investir em canções que o tempo deixou de lado, evocando não o Lado A do seu repertório, talvez nem o B, mas um Lado C, dado o caráter pessoal das escolhas. É o caso de ‘Sem fantasia’ (1968) e ‘As minhas meninas’ (1986). O resultado é um show lírico que, embora sem ter muitos números para cantar junto, o público ouviu com reverência e aplaudiu com entusiasmo.
Aliás, Chico Buarque subiu ao palco, pela segunda vez, em um dia histórico, quando o Brasil celebrava o Bicentenário da Independência, praticamente às vésperas de uma nova eleição para presidente, com um país polarizado entre candidatos de direita e esquerda.
Mesmo assim, as manifestações foram tímidas, para quem esperava algo inflamável de um artista cuja vida e a obra frequentam as páginas políticas da história do Brasil e que é um respeitado crítico da ditadura militar, a partir de canções como ‘Apesar de você’ (que alguém da plateia chegou a pedir), ‘Vai passar’, ‘Quando o carnaval chegar’ e ‘Roda viva’, todas, infelizmente, ausentes no repertório.
Mas o tema estava lá, no ar, no público, mas também no palco, verbalizado, gesticulado e até mesmo subentendido. Assim como ‘Cálice’ (também ausente) não é sobre uma taça para comunhão, mas um protesto ao “cale-se” do regime ditatorial, muitas das músicas que entremeiam o repertório ganham novo sentido no Brasil de 2022.
A mais emblemática é ‘Maninha’, que Chico compôs para irmã Miúcha (1937-2018) e foi apresentada no bis em dueto com Mônica. Ao cantarem os versos “se lembra quando toda modinha / Falava de amor / Pois nunca mais cantei, ó maninha / Depois que ele chegou” e “...mas não me deixe assim, tão sozinho / A me torturar / Que um dia ele vai embora, maninha / Pra nunca mais voltar”, o público entendeu o recado.
A abertura é significativa. Solo, Salmaso entoa ‘Todos juntos’ (do musical Os Saltimbancos) - “Todos juntos somos fortes / Somos flecha e somos arco / Todos nós no mesmo barco / Não há nada pra temer” - para, três números depois, cantar “O pescador me confirmou / Que o passarinho lhe cantou / Que vem aí bom tempo”, um resgate da canção ‘Bom tempo’, lançada por Chico em um compacto simples em 1968.
No seu sexto número solo (‘Paratodos’), Chico Buarque entra em cena, ovacionado. A partir daí, o roteiro segue com os dois no palco por mais cinco números, até ‘Imagina’, parceria de Chico e Tom Jobim, registrada em estúdio com a própria Salmaso no álbum Carioca, de 2006.
A canção sobre o Brasil de 2022 que, talvez, seja a mais direta é justamente a faixa que dá nome à turnê, ‘Que tal um samba?’. “De novo com a coluna ereta, que tal? / Juntar os cacos, ir à luta / Manter o rumo e a cadência / Desconjurar a ignorância, que tal?”, diz um trecho da letra, que acabou sendo costurada a clássicos de Dorival Caymmi (‘O samba da minha terra’) e Vinícius de Moraes (‘Samba da bênção’, cujos versos “a tristeza tem sempre uma esperança / De um dia não ser mais triste não” foram aplaudidos esfusivamente).
Sentado em um banquinho e com o violão, Chico e banda enfileiram quase duas dezenas de números, com eventuais participações da convidada especial, antes do bis. A sequência apresenta cinco músicas dos dois últimos álbuns de estúdio do compositor carioca, ‘Nina’ e ‘Tipo um baião’, ambas de Chico (2011), e ‘Blues pra Bia’, ‘Tua cantiga’ e o protofunk ‘As caravanas’ (com direito a citação a ‘Deus lhe pague’), as três de Caravana (2017), além das eternas ‘Samba do grande amor’, ‘Sabiá’ e ‘O meu guri’.
Aliás, ele erra ‘Tipo um baião’, para e pede desculpas. Mais tarde, em raro momento de descontração, volta ao erro, pergunta à banda se tem tocado tão bem quanto Canhoto da Paraíba (virtuoso instrumentista de Princesa Isabel, morto em 2008) e brinca com as fake news que espalham na internet. “Me chamam de mortadela, de esquerda caviar, mas eu já me acostumei com isso. Não me incomoda nem quando me chamam de tchutchuca”, disse, referindo-se a sua notória simpatia pela esquerda.
O tom político ganhou nova evidência no bis de três músicas (a citada ‘Maninha’, ‘Noite dos mascarados’ e ‘João e Maria’, esta uma parceria com o paraibano Sivuca), quando arremessaram ao palco um boné vermelho com a foto do candidato Lula, que ele usou por um breve momento. Aí teve “L” com o dedo e o público gritando palavras de ordem a favor do candidato o PT e contra o presidente Bolsonaro.
Enfim, um show bastante satisfatório para quem está se guardando para quando o Carnaval chegar…
TURNÊ ‘QUE TAL UM SAMBA?’
MÔNICA SALMASO
1) TODOS JUNTOS (Enriquez/Bardotti - Versão: Chico Buarque)
2) MAR E LUA (Chico Buarque)
3) PASSAREDO (Francis Hime/Chico Buarque)
4) BOM TEMPO (Chico Buarque)
5) BEATRIZ (Edu Lobo/Chico Buarque)
6) PARATODOS (Chico Buarque)
CHICO BUARQUE E MÔNICA SALMASO
7) O VELHO FRANCISCO (Chico Buarque)
8) SINHÁ (João Bosco/Chico Buarque)
9) SEM FANTASIA (Chico Buarque)
10) BISCATE (Chico Buarque)
11) IMAGINA (Tom Jobim/Chico Buarque)
CHICO BUARQUE
12) CHORO BANDIDO (Edu Lobo/Chico Buarque)
13) DESALENTO (Chico Buarque/Vinícius de Moraes)
14) SOB MEDIDA (Chico Buarque)
15) NINA (Chico Buarque)
16) BLUES PRA BIA (Chico Buarque)
17) SAMBA DO GRANDE AMOR (Chico Buarque)
18) INJURIADO (Chico Buarque) - COM MÔNICA SALMASO
19) TIPO UM BAIÃO (Chico Buarque)
20) AS MINHAS MENINAS (Chico Buarque)
21) UMA CANÇÃO DESNATURADA (Chico Buarque) - COM MÔNICA SALMASO
22) MORRO DOIS IRMÃOS (Chico Buarque)
23) FUTUROS AMANTES (Chico Buarque)
24) ASSENTAMENTO (Chico Buarque)
25) BANCARROTA BLUES (Edu Lobo/Chico Buarque)
26) TUA CANTIGA (Cristóvão Bastos / Chico Buarque)
27) SABIÁ (Tom Jobim/Chico Buarque)
28) O MEU GURI (Chico Buarque)
29) AS CARAVANAS (Chico Buarque), com citação de DEUS LHE PAGUE (Chico Buarque)
30) QUE TAL UM SAMBA? (Chico Buarque) - COM MÔNICA SALMASO
BIS
CHICO BUARQUE E MÔNICA SALMASO
31) MANINHA (Chico Buarque)
32) NOITE DOS MASCARADOS (Chico Buarque)
33) JOÃO E MARIA (Sivuca/Chico Buarque)
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 9 de setembro de 2022.