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Como Peter Jackson salvou os Beatles

publicado: 30/11/2021 08h00, última modificação: 29/11/2021 17h34
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tags: beatles , get back , peter jackson , documentário , disney+ , andré cananéa

por André Cananéa*

Maior grupo de rock de todos os tempos, os Beatles chegaram ao fim em 10 de abril de 1970. No mês seguinte, precisamente em 20 de maio, aterrissava nos cinemas do Reino Unido o filme Let It Be (acompanhado pelo disco homônimo). O longa-metragem de 81 minutos dirigido pelo cineasta Michael Lindsay-Hogg (o mesmo de Rock ‘N’ Roll Circus, dos The Rolling Stones) mostrava os perrengues entre John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr durante os ensaios do projeto que viria a se tornar o disco.

São discussões, arranca-rabos, climas tensos e azedos, mostrados por aproximadamente 40 minutos – metade do filme; o restante de Let It Be traz o registro do que se tornaria a última apresentação pública do grupo, no teto da gravadora Apple, em 30 de janeiro de 1969, conhecida pelos fãs como “Rooftop Concert”.

É um filme melancólico, escuro, tom que acabou por cristalizar o fim dos Beatles na lembrança dos fãs e também dos integrantes da banda. Pelo menos até alguns dias atrás, quando foi lançada a série The Beatles - Get Back, disponível para o público de todo o mundo através do serviço de streaming Disney+.

O cineasta Peter Jackson (diretor da consagrada trilogia O Senhor dos Anéis) teve acesso a quase 60 horas de filmagens e ouviu quase 150 horas de áudio captados pela equipe de Michael Lindsay-Hogg ao longo do mês de janeiro de 1969, quando os rapazes de Liverpool resolveram compor novas canções para lançá-las em um especial de TV (que acabou não vingando).

O resultado da proposta de Jackson – que dura cerca de oito horas, divididas em três episódios – é uma reparação histórica ao mostrar que Let It Be, o filme, não era fiel à realidade daquele período. Na montagem de Lindsay-Hogg, o processo foi caótico. Na de Jackson, não. Mostra, inclusive, como o alto astral do quarteto era maior do que qualquer rusga entre eles.

Get Back (ao contrário do mal-intencionado Let It Be, como fica claro agora) é fantástico em muitas vertentes. Cinquenta anos depois do fim da banda, os fãs, finalmente, conseguem ter uma noção precisa de como eram os Beatles “na vida real”. Como se comportavam quando estavam juntos, trabalhando, compondo, ensaiando e planejando ideias.

Nenhum outro filme, ou documentário, consegue fazer esse retrato com tanta precisão. Isso porque, se Michael Lindsay-Hogg errou na montagem do filme de 1970, acertou ao deixar a câmera rolando permanentemente, colada nos Beatles, durante todo o projeto de janeiro de 1969. Assim, Get Back funciona como um Big Brother em que o espectador acompanha aquele momento de intimidade criativa, em que o grupo compõe novas canções em um galpão do estúdio Twickenham, em Londres.

São canções que não ganhariam vida apenas no LP Let It Be, como também na última gravação do quarteto, Abbey Road (este viria a ser lançado antes daquele) e ainda em músicas que acabariam em discos solos dos integrantes, como ‘All things must pass’, que George Harrison lançou em seu famoso álbum homônimo, dali a quase dois anos.

A série de Peter Jackson é colorida, bastante nítida, com uma restauração impecável – parece que as imagens foram captadas hoje! O filme dialoga bem com os diversos níveis de fãs. Aos fãs mais especialistas no grupo, o mergulho naquele período é um deleite saboroso, sobretudo pela quantidade de canções que os Beatles dedilham descompromissadamente ao procurar inspirações para o repertório.

Get Back dá acesso a sequências notáveis, como a jam session catártica de John, Paul e Ringo – com Yoko Ono nos vocais – para exorcizar a saída de George da banda, bem no momento que o projeto começava a decolar (ele voltou, como vocês bem sabem). Ou quando, já no estúdio da Apple, eles iniciam as gravações de Let It Be e Paul lê um artigo sobre as desavenças entre os integrantes, incoerente com a união que o grupo mostra naquele momento, através da série.

Até quem não é fã dos Beatles há de curtir o seriado. Ela diz muito sobre trabalho em equipe e a importância de uma agenda de tarefas para que o grupo não perca o foco. Em determinado momento, Paul faz uma autoanálise de como os integrantes perderam o fio da meada enquanto banda após a morte do empresário Brian Epstein, um ano e meio antes. “O papai não está mais aqui”, desabafa o baixista.

O impacto histórico de The Beatles - Get Back é tão grande que fez Ringo ir às redes sociais chamar Peter Jackson de gênio e, após ver o documentário, Paul veio a público dizer que ele mudou sua percepção sobre o fim dos Beatles. “Ele (o seriado) mostra nós quatro nos divertindo”, declarou o baixista a um jornal, na semana passada, após uma sessão especial do
documentário. “Essa era uma das coisas importantes sobre os Beatles, nós poderíamos fazer um ao outro rir”.

E, adiante, quando é perguntado se Get Back realmente modificou sua percepção sobre o fim do grupo, Paul McCartney cravou: “Sim. E há a filmagem para provar. Afinal, eu definitivamente havia comprado o lado triste da separação dos Beatles e pensei: ‘Deus, eu sou o culpado!’”.

Não, Paul, você não é. E nem Yoko, como muito se pensou. No fim das contas, quem carrega essa culpa é mesmo Michael Lindsay-Hogg.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 30 de novembro de 2021.