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Coronavírus e o paradoxo da 'Caixa de Pássaros'

publicado: 14/04/2020 09h59, última modificação: 14/04/2020 09h59
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tags: caixa de pássaros , quarentena , andré cananéa

Mais uma semana - a quinta, desde que a cidade começou a parar - teve início ontem com uma estranha rotina: ficar em casa boa parte do tempo, ir ao supermercado e a farmácia uma vez ou outra para comprar mantimentos e remédios suficientes para dias, ou semanas, ficar sem abraçar, sem ver pais e avós, conversar via facetime e matar o tempo com filmes, leituras e com as “lives” que viraram febre entre os músicos.

Revi, no fim de semana que passou, ao filme Contágio, que fala como um vírus letal surgiu na China e se espalhou pelo mundo, colocando o planeta em alerta. O longa de Steven Soderbergh já tem quase dez anos, e quando passou nos cinemas, em 2011, tudo na tela parecia distante, pura ficção. Quem assistí-lo pela primeira vez hoje verá cenas muito familiares, como cálculos estatísticos da proliferação do vírus, o comportamento dos governos e as medidas de quarentena.

Mas mais do que Contágio, eu acho Caixa de Pássaros, o livro de Josh Malerman transformado em filme da Netflix com Sandra Bullock em 2018, um retrato mais fiel destes tempos de Covid-19. Vamos esquecer o filme - até por ele ser um filme esquecível - e focar no livro: o cotidiano das pessoas é subitamente interrompido por algo que eles não conseguem entender direito, só sabem que ao serem expostos, morrem!

Em virtude disso, as pessoas passam a se isolar dentro de casa e, quando se aventuram em sair porta afora, tomam toda a precaução que, no enredo, ao invés de máscaras, é uma venda (o contágio se dá, supostamente, pela visão). E tal qual os dias atuais, ir ao supermercado é uma aventura arriscada.

Nesse cenário de ficção, uma maneira de prever a ameaça se dá através de pássaros (daí o título da obra), os únicos capazes de identificar o perigo sem serem afetados por ele. Por essa linha, se o livro fosse sobre o novo coronavírus poderia se chamar “espirro”, ou “tosse”. E tanto no enredo ficcional, quando na nossa vida real, o vacilo é o maior inimigo: bobeou, somos pegos por esse ser invisível que a gente não sabe de que lado ele ataca.

De uma maneira mirabolante (como o são os best sellers e filmes blockbusters), a saída para essa estranha “epidemia” de Caixa e Pássaros está em subir um rio e encontrar um lugar onde as pessoas estão à salva dessa ameaça invisível. Malorie (Sandra Bullock no filme) topa o desafio, alcança seu objetivo e pronto! Fim! A vida real é diferente. Por agora, ficar em casa é a saída, uma proteção para você, sua família e os outros. Aonde o coronavírus vai dar, infelizmente, a gente ainda não sabe. O roteiro ainda não foi concluído.

Não foram poucas às vezes que a literatura de ficção, ou Hollywood, tentaram imaginar um cenário apocalíptico para o planeta terra. De ataques alienígenas a zumbis; de vulcões em erupção a tsunamis; do derretimento das calotas polares a furacões, sem falar, claro, em certos vírus que trazem todo o tipo de desgraça para a humanidade, praticamente tudo já foi pensado pelas mentes criativas de escritores e roteiristas.

A pandemia do novo coronavírus, entretanto, parece estar superando até mesmo o mais fantasioso dos roteiros. Domingo passado, a bela - e curta - apresentação do tenor italiano Andrea Bocelli foi ilustrada com imagens atuais de cidades como Paris, Londres e Nova York, completamente desertas. As câmeras apontavam para lugares famosos, que outrora ficavam apinhados de gente. Agora, todos estão vazios.

Embora eu esteja acompanhando a pandemia e os efeitos que ela vem trazendo ao mundo desde as primeiras notícias que surgiram na China, e mesmo daqui, da redação do jornal A União, de onde tenho visto o que acontece no mundo com uma lupa, separando o joio chamado fake news do trigo que é o fato, para que chegue ao leitor a informação correta e fiel à realidade, aquelas imagens, acompanhadas pelo som do hino cristão ‘Amazing grace’, me deram um soco no estômago tão forte que eu, enfim, desabei! Vivemos uma realidade de guerra mundial, com angústia, terror e morte. Ao invés de bala, morteiro e granada, apenas um espirro!

Foi uma Semana Santa como nenhuma outra: sem poderem ir às igrejas, fiéis se manifestaram pelo Instagram, plataforma escolhida para transmitir as missas da Quinta-Feira Santa, Sexta-Feira da Paixão, Sábado de Aleluia e Domingo de Páscoa. Acompanhei algumas missas e me peguei pensando que, quando o mundo voltar ao normal (se é que ele vai voltar ao “normal”), essa pandemia terá ensinado muita coisa e, por certo, mudará muito do nosso comportamento no campo do trabalho, do consumo e na maneira como buscando paz para a alma e para a mente - para além da missa, há muita gente assistindo cultos, fazendo terapia e praticando ioga à distância, por aplicativos de conversa.

Importante é seguir com fé. Esse roteiro há de terminar e todos nós torcemos que o final seja feliz, como nos blockbusters e nos best-sellers. Por enquanto, #fiqueemcasa. E fique bem!

 

*publicado originalmente na edição impressa de 14 de abril de 2020