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Criolo: da dor, nasce uma obra-prima

publicado: 17/05/2022 08h51, última modificação: 17/05/2022 08h51
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Foto: Divulgação

por André Cananéa*

Uma das vozes mais expressivas da atual safra da música brasileira, Criolo acabou de entregar um disco que corre o sério risco de se tornar o melhor lançamento nacional de 2022, e que já nasceu um clássico, um marco atemporal que retrata, como pouquíssimas obras (ou nenhuma) o Brasil da Covid-19 e do governo Bolsonaro, abordando as questões sociais, econômicas e humanitárias que esses dois fatores têm acarretado no país.

Disponível nas plataformas de streaming e para download no site do artista, Sobre Viver já dá o tom em seu título. As 10 faixas do álbum foram compostas durante o isolamento exigido pela pandemia, um período que Criolo tem retratado, em entrevistas, que foi muito difícil para ele e sua família, até pela morte de sua irmã mais nova em 2021, Cleane Gomes, de 39 anos, vítima da Covid.

Esse fato acabou levando o cantor e compositor a incluir uma faixa em homenagem a ela, ‘Pequenina’. A canção reúne Criolo, MC Hariel e Liniker nas rimas e ainda tem as cordas luxuosas de Jaques Morelenbaum, além de uma participação da própria mãe do cantor, Maria Vilani. É uma faixa doída, que lamenta não só a partida de um ente querido, mas as dificuldades financeiras de uma família: “Mães sofrem em silêncio há tanto tempo / Nem todas tem a casa com equilíbrio no sustento (...) Abandono e o descaso são temperos deste coração / Eu prometi que ia ser rico e cuidar dos meus irmãos / Cuidar da minha irmã, agora só em prece / Ela não tá mais aqui... é que esse mundo não te merece”.

Esse fato acabou levando o cantor e compositor a incluir uma faixa em homenagem a ela, ‘Pequenina’. A canção reúne Criolo, MC Hariel e Liniker nas rimas e ainda tem as cordas luxuosas de Jaques Morelenbaum, além de uma participação da própria mãe do cantor, Maria Vilani. É uma faixa doída, que lamenta não só a partida de um ente querido, mas as dificuldades financeiras de uma família: “Mães sofrem em silêncio há tanto tempo / Nem todas tem a casa com equilíbrio no sustento (...) Abandono e o descaso são temperos deste coração / Eu prometi que ia ser rico e cuidar dos meus irmãos / Cuidar da minha irmã, agora só em prece / Ela não tá mais aqui... é que esse mundo não te merece”.

Talvez por isso, a palavra “depressão” seja tão recorrente ao longo do álbum, alinhada a dor, a desilusão (que chega ao ápice em ‘Quem planta amor aqui vai morrer’) e a fé. Enquanto as desigualdades sociais são narradas em tom de alerta e/ou crítica, a fé conclama força e coragem. ‘Yemanjá chegou’ ainda tem o tom de crítica social, porém em ‘Ogum Ogum’, ele canta: “São Jorge venha me proteger / São Jorge me ajude a seguir / Meus passos não vão perecer”.

Talvez por isso, a palavra “depressão” seja tão recorrente ao longo do álbum, alinhada a dor, a desilusão (que chega ao ápice em ‘Quem planta amor aqui vai morrer’) e a fé. Enquanto as desigualdades sociais são narradas em tom de alerta e/ou crítica, a fé conclama força e coragem. ‘Yemanjá chegou’ ainda tem o tom de crítica social, porém em ‘Ogum Ogum’, ele canta: “São Jorge venha me proteger / São Jorge me ajude a seguir / Meus passos não vão perecer”.

Não só no discurso, mas na sonoridade, Criolo avançou artisticamente. Seus vocais estão mais seguros e versáteis, assim como os arranjos. ‘Sétimo templário’ é o mais próximo do rap que se estabeleceu nos anos 1990, com Racionais MCs, Gog etc., uma letra longa que inclui o que parece ser um resumo do noticiário nacional nos três últimos anos.

Estão lá o estímulo às armas (“A morte vem de ciranda, velho, mulher e criança / De uma sala secreta um olho que sangra a lança / Um presidente que diz plau depois pergunta: / Isso é matança?”), milícia (“Milícia é milícia, bacana é bacana”), Amazônia (“Assassinato em série, ceis votaram na morte / Não existe amanhã se a Amazônia morre”), povo indígena (“A última voz indígena / Assassinada de forma esdrúxula”), eleição (“Quando o racismo vira voto, a morte dropa na infância”) e a preocupação com crianças desassistidas (“Nossa maior riqueza é o sorriso da criança / Slogan do governo é: vou cuidar dessa criança / mas se ver a pele preta, vai matar essa criança”).

Não é exagero dizer que ‘Me corte na boca do céu, a morte não pede perdão’ é uma obra-prima, dessas com lugar garantido na eternidade. Composta por Criolo em parceria com Tropkillaz, produtor de boa parte do disco, a faixa traz um dueto com ninguém menos que Milton Nascimento.

A canção tem um arranjo soturno, pontuado por naipes de metal e piano, e a letra merece ser ouvida com atenção, quiçá decifrar cada verso: “A mãe preta no barraco o mundo é injusto / porque só sobrou pra ela o balaio do peso do amor” canta Criolo.

Com voz frágil, mas ainda um vozeirão, Milton canta: “Sem Deus no coração sou só uma unidade de carvão / E o menino carvoeiro na fé que move a nação / Ao ateu a reza e ao rezado a razão / E que no aterro da desgraça suba o cheiro da comunhão”, e lá na frente, “É que aqui só morre pobre, isso a TV não mostrou, Ou mostrou e eu nem percebi do sofismo que impregnou”.

É uma canção que, em outros tempos, já nasceria eternizada. A ouço pensando que ela é o ‘Cálice’, ‘Alegria, Alegria’ ou ‘Pra não dizer que não falei das flores’ (cujos andamentos são bem parecidos, por sinal) dos tempos atuais, não só pelo contexto político, mas também social e comportamental. Um sopro de lucidez gigante na era das músicas entorpecidas do TikTok, ou na banalização intelectual do hit parade dos Spotifys da vida. 

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 17 de maio de 2022.